Diário de um pintor atormentado
por Bruno CarmeloAlerta inicial aos fãs de David Lynch: para quem espera ver uma descrição detalhada sobre o processo de criação de filmes famosos como Cidade dos Sonhos ou Veludo Azul, pode esquecer. Este documentário se dedica quase inteiramente à infância do cineasta e a sua carreira como pintor, deixando as aspirações cinematográficas e a consagração internacional em segundo plano. Eraserhead chega a ser citado; os demais filmes sequer aparecem.
Os diretores Jon Nguyen, Rick Barnes e Olivia Neergaard-Holm convidam o biografado a se trancar num estúdio e contar a história de sua vida. Nesta entrevista única, ele dispõe de liberdade para falar o que quiser, pulando trechos que não interessem e privilegiando episódios que considere importantes. Lynch efetua grandes saltos temporais, mas consagra tempo particular aos pesadelos e episódios sombrios, entre a realidade e ficção, que permeiam o imaginário de suas obras. Os traumas de infância e os encontros com outros artistas são destacados em tom felizmente pouco elogioso, aberto à autocrítica.
Embora o material sonoro seja bastante interessante, o trio de criadores não encontra imagens à altura. Nenhuma escolha estética, seja com imagens de Lynch pintando, fotografias de arquivo ou quadros do artista, se eleva ao nível das descrições efetuadas pelo biografado. De modo geral, David Lynch: A Vida de um Artista funciona melhor em sua vertente sonora do que no agenciamento audiovisual essencialmente cinematográfico. As cenas captadas pelos diretores são elegantes, bem filmadas, ao passo que a tentativa de assimilar episódios na juventude do pintor ao conteúdo de suas obras parece simples, porém eficaz. No entanto, o projeto sofre do mesmo mal do recente De Palma: a ausência cruel de um ponto de vista.
Os diretores deixam que Lynch controle não apenas sua história, mas o documentário como um todo. Ele diz o que quer, oculta fatos importantes, interrompe passagens delicadas, sem que o filme busque preencher essas lacunas. Nguyen, Barnes e Neergaard-Holm adotam uma postura passiva demais neste discurso e estética sem fricções, incapaz de trazer alguma ideia independente, autoral, divergente daquelas de Lynch. O trio se torna refém do biografado, por não ter uma noção precisa de onde pretende chegar com o projeto. Talvez por isso a conclusão seja abrupta, como se o projeto terminasse por falta de som, por falta de Lynch, e por falta de ideias – uma conclusão por esgotamento.
David Lynch: A Vida de um Artista pode agradar aos fãs do cineasta/pintor pela curiosidade biográfica e àqueles afeitos a uma visão determinista da arte (“o artista cria assim porque passou por tal experiência de vida”, “toda obra é um reflexo exato de sua personalidade”). Como forma de cinema autônomo, como reflexão sobre David Lynch ou como articulação entre a vivência específica de Lynch e o cenário artístico de modo geral, o documentário revela-se pouco satisfatório.