A ética da representação
por Bruno CarmeloEmbora o tema deste documentário seja a crise de refugiados na Itália, o diretor Pippo Delbono começa o projeto falando de si mesmo. Ele se grava com um celular, saindo do hospital, dizendo sofrer de uma doença desconhecida que gera a visão constantemente duplicada. Como seria o filme de um cineasta com uma deformação grave no olhar? A resposta diz menos respeito à estética do que à temática: por se sentir isolado e diferente dos outros, ele busca outras pessoas isoladas e diferentes, no caso, um grupo de refugiados solicitando o visto de estadia em território italiano.
Dormindo no centro como um pretenso refugiado, ele filma os colegas com uma câmera amadora, enquanto o diretor de fotografia grava Pippo filmando os demais. Por um lado, o conteúdo humano manifestado diretamente pelos estrangeiros é comovente: eles narram as difíceis travessias em alto mar, a extorsão praticada pelos donos do barco, a violência dos policiais, o descaso dos governos europeus com aqueles que fogem de guerras, ditaduras ou perseguições étnicas e religiosas. Suas expressões, seus corpos, sua diversidade de línguas e histórias constituem por si só um importante retrato sociopolítico.
Além dos depoimentos, o cineasta decide criar uma peça de teatro com os refugiados. O projeto não possui real intenção de ser concluído, nem encenado, porém Delbono gosta do prazer de dar ordens aos colegas e vê-los executarem o desejado. O problema é que os supostos atores jamais têm consciência do que realmente estão fazendo, seja pela barreira da língua, seja por falta de explicação do cineasta. “Nosso destino está em suas mãos”, suplica um deles, deixando claro que acredita no potencial do filme em facilitar o processo de estadia na Itália, algo que constitui uma falácia perigosa. Estes homens, muitos deles muçulmanos, participam de uma peça cristã (o “Evangelho” do título original) sem saber que o fazem, e jamais são treinados para atuarem: eles imitam, repetem o que Delbono solicita aos gritos.
Para piorar a postura ética de Vangelo, o diretor faz questão de pedir aos entrevistados que reproduzam seus traumas. O homem que perdeu 54 amigos em alto mar tem seu testemunho gravado dentro de um barco idêntico ao da tragédia, já outro que ficou três dias boiando tem sua imagem filmada enquanto mergulha na água. Muitos refugiados ficam claramente incomodados com as perguntas, pedem para interromper o processo, ou não compreendem as questões. Delbono aproxima a sua câmera caseira a dez centímetros dos rostos, despe os homens com as próprias mãos, pede que se sentem, que se levantem, que gritem, que repitam nomes de apóstolos. “Eu só te digo tudo isso porque confio em você”, revela outro participante do projeto. Não seria exagero descrever esta relação como abuso de confiança por parte do italiano.
Vangelo remete aos procedimentos duvidosos de Michael Moore. O documentarista americano ficou conhecido por se colocar em cena, fazendo de si mesmo um personagem-justiceiro, distorcendo fatos e humilhando entrevistados na intenção de comprovar uma tese preconcebida. Delbono não se preocupa com o que os homens têm a dizer, contanto que se comportem como ele deseja, produzindo as imagens e os enquadramentos necessários. Ele conduz os depoimentos sem se abrir ao novo, sem permitir surpresas nem aprendizado. Por trás da nobre intenção de expor uma crise humanitária gravíssima, o filme italiano retrata pessoas como fantoches disponíveis aos caprichos do diretor.
Filme visto no 6º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba, em junho de 2017.