Traumas, perdas e uma certa beleza
por Rodrigo TorresQuentin Tarantino não é o único grande cineasta americano em atividade que articula diálogos corriqueiros com habilidade. Richard Linklater consegue transformar um bate-papo descontraído entre dois jovens que acabaram de se conhecer em um lindo romance em longa-metragem, assim como as trivialidades da vida colegial compõem todo um filme basicamente sem trama. É por esse poder de observação da alma humana e sensibilidade impressionantes que mesmo um trabalho mais ordinário, como Last Flag Flying, reserva emoção genuína e boas risadas.
Last Flag Flying é uma espécie de continuação de A Última Missão, clássico de 1974 dirigido pelo subestimado Hal Ashby. A sequência é virtual porque Sal (Bryan Cranston), Richard (Laurence Fishburne) e Larry (Steve Carell) não são os mesmos personagens vividos, respectivamente, por Jack Nicholson (Buddusky), Otis Young (Mulhall) e Randy Quaid (Meadows). Também diferente é o delito cometido no passado. Para acentuar a gravidade desse crime, Linklater comete um súbito equívoco.
De modo banal, Richard indaga Sal sobre algo que ambos sabem ("O que nós fizemos?"), tornando o diálogo estranhamente inverossímil e superficial, haja vista os esforços de Fishburne e Cranston em tornar plausível uma pergunta que tem como único intuito esclarecer para o público o que acontecera com o trio. Curiosamente, a resposta é fragmentada e revela pouco mais do que já se sabia, o que não só acentua sua inutilidade, como a falta de costume de Linklater em construir falas expositivas.
A bem da verdade, o momento de maior catarse em Last Flag Flying é uma conversa que se vale de recurso semelhante, porém dotado de contexto e inspiração. Mais ainda, o momento em que os amigos lembram a noite em que Larry perdeu a virgindade e Sal goza das estripulias do jovem Richard (no presente, um respeitável reverendo) é escape para o talento da trinca protagonista, que demonstra uma química incrível em todo o longa-metragem.
Laurence Fishburne sublinha a severidade de Richard Mueller com certo rigor, mas transita bem para a comédia e demonstra respeito tanto ao declamar as crenças do reverendo, como ao revelar suas contradições. Em mais um ótimo trabalho no cinema após o premiado Walter White de Breaking Bad (homenageado com a icônica "You’re goddamn right!"), Bryan Cranston vive Salvatore Nealon como um velho rebelde, vulgar, por vezes insuportável, tantas outras divertidíssimo, melhorando todas as gags que lhe cabem (inclusive as ruins, umas piadinhas de tiozão). E Steve Carell brilha na doce interpretação do tímido Larry "Doc" Shepperd — um homem triste que emociona em cada raro sorriso.
O roteiro não serve apenas ao elenco, porém. Assim como em Boyhood e Jovens, Loucos e Mais Rebeldes, a ambientação de Last Flag Flying no passado permite que Richard Linklater exerça seu fascínio por situar o filme em seu tempo: "Without Me" de Eminem toca no rádio e inaugura uma discussão (positivamente) aleatória sobre a música negra e a Motown; o advento do celular mostra que 2003 já é um passado distante no campo da tecnologia; e os noticiários, a memória recente do 11 de setembro, a paranoia policial e o principal evento que move a trama — a morte do filho de Larry no Iraque — veiculam a crítica ao belicismo norte-americano como na obra original de Darryl Ponicsan, que assina o texto com Linklater.
O cineasta tem trabalho para diluir a ojeriza do escritor às ações beligerantes dos Estados Unidos. A representação arbitrária e preconceituosa do Coronel Wilits (Yul Vazquez, excelente em viver tipos desprezíveis) acusa a moral distorcida, abusiva do Exército. A dinâmica entre a trinca de veteranos e o militar em início de carreira Washington (J. Quinton Johnson) possibilita as inúmeras associações entre o Vietnã e o Iraque, em uma denúncia persistente sobre a tragédia bilateral em se ocupar um outro país. Ponicsan enfatiza: guerra é sinônimo de traumas e mentiras.
Por isso, a sensação inicial diante do fim de Last Flag Flying é de traição com seu próprio discurso. Porém, mais que um discurso político, o filme é um road movie sobre três pessoas comuns, como o a música folk ao fundo assinala. Uma jornada de luto e superação para Larry, um reencontro com o passado para Richard e, no único grande aprendizado do longa, um confronto com a maturidade para Sal. O sincericida que se orgulha de nunca mentir, ao custo de ser grosseiro, aprende ao conhecer a Sra. Hightower (Cicely Tyson) que a ignorância pode ser valiosa a uma pessoa ferida.
Assim, em conspiração com Richard e Washington (que recebe do Exército a mais dura das missões: enterrar o melhor amigo contra a vontade do pai), Sal cria uma verdade mais palatável a Larry, engole seu orgulho, veste a farda e proporciona a um homem deprimido, sem a esposa, sem o filho, um funeral confortante ao lado dos únicos amigos. Assim, Linklater esgarça a tristeza e encontra a beleza. Assim, ensina a fazer melodrama. Mais uma vez.
Filme visto no 19º Festival do Rio, em outubro de 2017.