"EU NÃO SOU NEGRO. EU SOU UM HOMEM"
A frase acima - uma das muitas criadas pelo escritor e pensador James Baldwin, no calor dos fortes acontecimentos da luta contra o racismo nos EUA -, está entre aquelas que devem merecer a maior das atenções de todos aqueles que se preocupam com as injustiças que homens cometem contra outros homens, em qualquer dimensão que acontecer a abordagem.
Ela está intimamente articulada com tantas outras carregadas de significados geradas no calor da hora da violência feroz dos brancos contra os negros nos anos 60 do Século XX, mas nem por isso desprovidas de profundidade e razão. James Baldwin ensina que um possível "desejo de pureza" é que impede que o homem branco admita suas falhas, agindo justamente ao contrário, e fomentando a defesa das mesmas de forma selvagem. "Por que foi preciso haver o negro?", indaga Baldwin. A explicação de alguma forma é dada por uma cena de um dos milhares de filmes produzidos pelos brancos, para mostrar a conquista do território americano, no que se convencionou chamar a conquista do Oeste, onde o negro de então, eram os peles vermelhas, os índios que precisaram ser dizimados para a história se consumar.
Há filmes que nos fazem rir, chorar, pensar, buscar conhecimento, oferecem prazer estético, outros são verdadeiras peças de guerrilha cultural, outros são obras com a assinatura de mestres, com o nome consolidado e portanto reconhecidos como "autores" de cinema. Este "Eu não sou seu negro", tem um pouco de tudo isso. E a soma disso tudo, na verdade não é uma equação de matemática. É uma obra de arte, não muito comum no chamado cinema documental, com grandes doses de emoção, reflexão e ensinamentos, sem contudo deixar de oferecer momentos estéticos sublimes.
Por meio da palavra de James Baldwin, pela locução sensível e nada afetada de Samuel L. Jacson, narrativa sustentada no manuscrito "Remember This House", nunca transformado em livro, mas em filme pelo cineasta haitiano Raoul Peck, que emprega na construção de seu libelo acusador, farto material documental, inclusive com a voz e a presença de James Baldwin, muitas vezes entrevistado pela TV Americana na época dos trágicos acontecimentos. E como são trágicos: a humilhação de Dorothy Counts, primeira mulher negra a frequentar um colégio exclusivo para brancos; os assassinatos de Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King Jr. Aliás, o manuscrito é fundado justamente nos assassinatos das três lideranças do movimento negro.
Pelas palavras de Baldwin, também tomamos contato com as divergências que mantinha em relação à forma de luta proposta por Malcolm X, para ter os direitos civis reconhecidos como homens pertencentes a uma sociedade, e não discriminados pela cor de sua pele. A forma de luta violenta de Malcolm X, foi veemente questionada por Baldwin.
O CINEASTA - Praticamente um desconhecido entre nós, público brasileiro, esse é o haitiano Raoul Peck. Este que é um dos seus últimos filmes, talvez, esteja chegando ao público brasileiro em decorrência de seu destaque internacional e pelo fato de concorrer à estatueta do Oscar, na categoria Documentários. Pena que vai entrar em bola dividida com outro grande filme do gênero, o italiano, "Fogo sobre o Mar", de Gianfranco Rosi, que coincidentemente trata do drama de negros que saltam do continente negro para o mar em busca de uma vida melhor, fugindo da fome, da peste e das violências das ditaduras sangrentas tão comuns por lá.
Há a promessa e já foi anunciada a estreia para junho desse ano de outro filme de Raoul Peck. Desta feita um drama que focaliza a juventude do filósofo Karl Marx, também produzido em 2016. Contudo, dois de seus filmes anteriores, um documentário e outra ficção, produzidos em 2013 e 2014, cujo tema central reside na tragédia que se abateu sobre o Haiti, a partir do terremoto de 2010, esses ainda permanecem inéditos para o grande público no Brasil.
Enfim, "Eu não sou seu negro", é uma obra contundente, porque assim é o seu personagem central que merece ser revisitado em seus escritos, manifestações e pensamentos. Se não for possível, aí está o filme de Raoul Peck que nos proporciona uma síntese do pensamento agudo que nos coloca diante de questões centrais como esta de por que é preciso ter um negro à frente do branco para justificar sua incapacidade de assumir suas falhas, seus defeitos?
Com Baldwin, também aprendemos que a "história não é passado, é presente!" A história dos negros nos EUA é a história dos EUA. E, essa história não tem sido de forma alguma edificante. Agora mesmo em outro cenário, a NASA, mas no mesmo tempo histórico, tomamos contato com outras histórias de preconceito e racismo. Refiro ao filme "Estrelas Além do Tempo", de Theodore Melfi, também de 2016, que revela a história das mulheres negras que fizeram a diferença na corrida espacial, quando deram contribuição decisiva para os trabalhos na NASA. Superaram a página negra com sua competência e persistência, não sem antes sofrerem humilhações.
Raoul Peck e James Baldwin, nos fazem pensar e suas palavras e imagens a ir um pouco além, por que não nos despirmos dos piores sentimentos que guardamos em nosso íntimo? Certamente a vida será muito melhor!