Narradores do Brasil
por Lucas Salgado13 anos após realizarem o ótimo Narradores de Javé, a diretora Eliane Caffé e o ator José Dumont voltaram a trabalhar lado a lado em Era o Hotel Cambridge. Curiosamente, os dois filmes possuem muito em comum. Lá, mesclando atores com personagens reais, a diretora retratou o dia a dia de uma comunidade em risco de desaparecer sob as águas de uma enorme usina hidroelétrica. Agora, a cineasta volta a reunir atores e não-atores para contar a história de moradores sem-teto que ocupam um prédio abandonado em São Paulo, que vivem diante da ameaça de despejo pelas forças do Estado.
Ou seja, nos dois casos temos forças externas (e estatais) agindo diante de uma população carente. A diferença principal é que no filme de 2003 o cenário era rural. No novo, é urbano.
Caffé registra o dia a dia dos moradores do Hotel Cambridge, tradicional hotel de São Paulo fechado e abandonado em 2011. Um ano depois, foi ocupado por moradores sem-teto, em sua maioria refugiados. A diretora dá uma atenção muito especial justamente a estes refugiados, que veem ao país sem dinheiro, família ou mesmo conhecimento da língua, em busca de um futuro melhor.
Neste sentido, o filme de Eliane Caffé é muito atual e importante. A questão dos refugiados está em discussão em todo mundo e o cinema só ajuda a levantar este debate ao oferecer uma visão singela dessas pessoas, que geralmente sofreram muito para chegar até aqui e que muitas vezes são tratadas com desprezo e preconceito, ao invés de acolhimento.
O debate sobre a ocupação de espaços abandonados também é importante. E o filme arruma tempe até para questionar a onda de ódio vinda da internet e que muitas vezes atinge a população mais carente. Através de uma página na internet, o longa mescla fotos de refugiados felizes acompanhadas de depoimentos fascistas de haters.
José Dumont e Suely Franco são os dois grandes nomes do elenco, mas o foco está mesmo nos não-atores. Numa mescla de ficção e documentário, Caffé mostra duas semanas na vida dessas pessoas, seus sonhos e desilusões. Momentos de intimidade e de construção artística.
O filme possui problemas de ritmo e de montagem. No final das contas, é mais importante do que bom. Não há como não valorizar o fato de ter humanizado um grupo de pessoas muitas vezes maltratados ou ignorados pela mídia. Não estamos diante de vagabundos. Estamos diante de pessoas sonhando com uma melhor condição de vida.
Filme visto durante a cobertura do Festival do Rio, em outubro de 2016.