A parábola do garoto convertido
por Bruno CarmeloA professora chama a atenção de Ahmed na saída da aula: “Não vai apertar a minha mão?”, ao que ele responde: “Um muçulmano de verdade não aperta a mão de uma mulher”. Desde a primeira cena, está dado o conflito central de Young Ahmed, história de um pré-adolescente seduzido pela interpretação radical do Alcorão. Ao invés de propor um grito de alerta, uma cautionary tale, os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne tentam compreender o que leva uma criança a pensar em matar outra pessoa em nome de Alá. O mundo ao redor do protagonista é multifacetado: a mãe possui um olhar relativamente progressista, o irmão se preocupa mais com o esporte do que com as preces, os pais dos colegas apresentam interpretações muito distintas da religião muçulmana. O que conduz Ahmed à violência e, principalmente, de que maneira agir com um garoto nessa situação?
Para a primeira pergunta, os diretores belgas demonstram sua habitual complexidade de roteiro e de visão de mundo. Ahmed (Idir Ben Addi) enxerga no imã uma figura paterna, alguém que o trate como um adulto em potencial, ao contrário da mãe (Claire Bodson) com suas ordens e conselhos protetores. Além disso, o garoto tem pressa de crescer e se encaixar em algum grupo social. De personalidade tímida, ele encontra no núcleo radical do primo um lar para acomodar sua virilidade. De repente, é ele quem dá ordens à mãe e à professora (por serem mulheres), é ele quem vigia as ações do irmão mais novo. O protagonista é promovido ao status de “homem da família”, razão pela qual o atalho das escrituras lhe parece tão promissor.
Os diretores trabalham esta postura com seu jovem ator através de um misto de rebeldia adolescente e convicção profunda. Ben Addi caminha muito bem entre a inocência e a arrogância, com o olhar baixo, emburrado, que representa tanto a resiliência quanto a birra infantil. A voz ainda é vacilante, mas ele engrossa o tom e busca palavras de efeito quando quer ser ouvido. Os demais atores são dirigidos no mesmo registro naturalista que os autores vêm aperfeiçoando há anos, obtendo uma espécie de realismo terno, um otimismo em relação à possibilidade de mudanças. Os Dardenne sempre apresentam possíveis vias de escape aos problemas propostos, ainda que nenhuma delas seja particularmente fácil.
A trama aborda a religião muçulmana com grande respeito, ressaltando que o radicalismo é uma leitura minoritária, e que esse tipo de desvio da norma também pode ser encontrado em outras situações ou religiões – vide o exemplo dos colegas do centro de detenção. Talvez o principal traço desta empatia evidente se encontre na coincidência entre o olhar de Ahmed e o do espectador. Nós não apenas acompanhamos os planos de assassinar a professora, mas também somos os únicos a testemunhar passo a passo da execução e das consequências. Quando o garoto apanha uma faca escondida na meia, a câmera desliza rapidamente para revelá-la ao público. Somos convidados, portanto, a enxergar o mundo pelo ponto de vista dele, e tentar entendê-lo antes de julgá-lo.
Não é fácil ter um potencial assassino como protagonista, mas os diretores compram a briga para nos aproximar de uma questão controversa, normalmente representada por meio de exageros ou idealizações. Isso nos leva à segunda pergunta: o que fazer com Ahmed? Neste aspecto, o drama encontra as suas melhores soluções narrativas e visuais ao criar uma rede de afetos que propõem ao jovem outras formas de pertencimento social para além da religião. Ele encontra o estímulo do esporte, do trabalho comunitário e o amor de uma garota não-muçulmana de sua idade. O trabalho de câmera se mantém impecável, seguindo o garoto onde quer que seja, revelando os seus segredos (a escova de dente, a carta à mãe) enquanto preserva sua dignidade (o tilt da câmera durante um acidente). O steadycam frenético e discreto dos Dardenne resulta em enquadramentos ao mesmo tempo belíssimos e expressivos.
Com o novo drama, os diretores prosseguem no movimento de criar obras cada vez mais diretas, próximas das parábolas ou contos. A trama enxuta de Young Ahmed poderia ser facilmente resumida num discurso oral: “Era uma vez um garotinho muçulmano...”. Através do caso pontual de um único menino belga, o filme discute organicamente a introdução do radicalismo na Europa, as fronteiras entre diferentes interpretações do Corão, a relação entre homens e mulheres, a visão deturpada dos professores como “doutrinadores” e as soluções que as famílias e a comunidade podem adotar. Inteligentemente, a cena final se presta a várias interpretações como cabe, afinal, a um tema tão complexo. Deste modo, os Dardenne fomentam a reflexão sem se limitar à pregação ou à constatação dos fatos. A falsa simplicidade do filme esconde um precioso refinamento narrativo.
Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.