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    A 13ª Emenda
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    A 13ª Emenda

    O racismo institucionalizado

    por Bruno Carmelo

    Há quem enxergue a discriminação racial como um problema de caráter, uma falha individual. Algo que as pessoas praticam, mas não deveriam praticar. Esta visão moral e redutora do racismo costuma ser empregada por instituições que pretendem isentar a estrutura social de responsabilidade pela reprodução dessas práticas, geração após geração. Felizmente, o documentário da Netflix A 13º Emenda põe o dedo na ferida mais importante: o racismo nos Estados Unidos não constitui um deslize eventual, mas um projeto voluntariamente perpetrado pelas classes dominantes.

    A cronologia adotada pela diretora Ava DuVernay coincide a história dos Estados Unidos com a história do cinema. Afinal, o preconceito é uma questão de imagem, e a cineasta apresenta o clássico racista O Nascimento de uma Nação (1915) como mito fundador da concepção do negro bestial, ladrão e agressivo. A 13º Emenda da Constituição, que prevê o fim da escravidão e a liberdade para todos os cidadãos, faz uma ressalva para pessoas que cometeram crimes. Estas não têm direito a liberdade, tornando-se “escravas do Estado”. Assim, a trajetória das pessoas negras no país está intimamente associada ao crescimento dos interesses conservadores no encarceramento em massa e na exploração econômica das prisões privadas.

    Em cerca de 100 minutos, o projeto condensa uma quantidade impressionante de documentos, depoimentos e imagens de arquivo. O formato permanece convencional – DuVernay adota uma narrativa cronológica, e não cria imagens próprias para além das entrevistas – mas apresenta uma agilidade notável na montagem. O ritmo é intenso e agradável, jamais explicando algum conceito de modo incompreensível ao público médio. O uso de trechos de hip hop contribui a criar uma aparência despojada e menos escolar ao documentário, além de apontar para a especificidade da cultura negra. Um ex-presidiário, rumo ao final do filme, fornece uma explicação que serve ao projeto como um todo: “Nós, que somos extensões desta opressão, não precisamos ver imagens para saber o que está acontecendo. Imagens servem para falar com as massas que têm ignorado esta realidade durante a maior parte de suas vidas”.

    Portanto, A 13ª Emenda parte de duas importantes asserções, uma de ordem jornalística, e a outra, ideológica. Primeiro, insiste que as pessoas precisam saber desta realidade, e que os interesses escondidos da mídia e dos investidores devem ser conhecidos por todo o mundo. Segundo, sugere que esta realidade ainda existe: embora o racismo tenha sido oficialmente abolido, o governo – tanto republicano quanto democrata – tem investido em novas formas de associar a população negra à criminalidade, de criar penas mais fortes aos jovens desfavorecidos. A maioria negra, desproporcionalmente representada nas prisões norte-americanas, continua controlada e explorada pela maioria branca do Congresso e do Senado.

    É impressionante que a cineasta consiga debater temas tão complexos com tamanho senso de organização. Não existem pessoas gritando nem chorando nas imagens, e o apelo emocional só aparece nas últimas cenas, após uma longa defesa racional da tese socioeconômica do filme. Os professores e pesquisadores convidados para discorrer sobre o tema não falam diante de bibliotecas ou quadros negros – o tradicional clichê da erudição e respeito – mas dentro de galpões vazios, impecavelmente fotografados, numa espécie de zona neutra. Se estivessem em suas casas, pensaríamos numa fala confessional, se estivessem nas ruas pobres da cidade, teríamos um sentido comunitário. Mas dentro de locais isolados, diante de paredes de tijolos e tetos de vidro, apenas as ideias dos entrevistados ecoam junto ao espectador.

    Como em todo projeto político adotando um claro ponto de vista, algumas argumentações podem parecer mais convincentes que outras. O segmento sobre o papel oculto da ALEC é contundente, porém as acusações de má gestão das prisões mereceria maior aprofundamento. As críticas ao centrismo de Hillary Clinton e Bill Clinton se desenvolvem muito bem, no entanto o papel do primeiro presidente negro, Barack Obama, parece secundário na história do país. Mesmo assim, é inegável que A 13ª Emenda constitui um projeto muitíssimo bem articulado e seguro de seu raciocínio. DuVernay inclusive encontra espaço para dar voz aos grandes empresários racistas e para as divergências de opinião dentro do próprio movimento negro, aprofundando a complexidade do debate.

    Nos Estados Unidos, o filme recebeu críticas massivamente positivas, vindas da mídia de todas as orientações políticas. É curioso que as duas únicas posições contrárias ao projeto tenham vindo de um tabloide de direita e um articulista sensacionalista de esquerda. O primeiro, Kyle Smith, do New York Post, sustenta que o encarceramento massivo de negros não seria uma perseguição nem uma escolha ideológica, e sim culpa dos próprios cidadãos negros, supostamente mais propícios a práticas ilícitas. Já Armond White, do National Review, taxa o resultado de “burguês” pelas imagens refinadas demais e discurso óbvio – o filme sublinha várias vezes a palavra “criminoso”, quando citada pelos entrevistados -, mais preocupado com o alarmismo do que com o reconhecimento dos avanços obtidos pelos movimentos sociais.

    Entretanto, os dois pontos de vista parecem infundados. O da direita, por sustentar uma espécie de “meritocracia do preconceito”, que constitui a base do racismo e de outros discursos de ódio – misoginia, homofobia, transfobia, xenofobia. O da esquerda, por esquecer que talvez esta reflexão não seja óbvia ao público a que se destina, incluindo a classe média que escuta diariamente o discurso de ódio das mídias hegemônicas. Além disso, chamar A 13ª Emenda de burguês por seu formato tradicional parece exagerado em vista dos argumentos ousados e das figuras militantes que compartilham as suas histórias, como Angela Davis. O otimismo de Ava DuVernay também é inegável: após tantas denúncias, ela espera que as pessoas sejam sensibilizadas pelo discurso. A diretora acredita numa arte útil, questionadora, capaz de causar transformações sociais. Este tipo de pensamento está no germe das filosofias progressistas da esquerda.

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