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    Deserto
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Deserto

    O teatro da vida real

    por Francisco Russo

    Cria do teatro, Guilherme Weber fez sucesso em peças como "A Vida é Cheia de Som e Fúria" e "Avenida Dropsie" e, depois, migrou para a televisão. No cinema até teve pequenas participações como ator, mas nada muito relevante. Diante deste histórico, não é exagero dizer que Deserto seja sua grande estreia na sétima arte - o que de fato é, só que na função de diretor. E com o pé direito!

    Assessorado pela produtora Vania Catani, que já cuidou da estreia na direção de outros dois atores renomados - Selton Mello, com Feliz Natal, e Matheus Nachtergaele em A Festa da Menina Morta -, Weber demonstra talento e ousadia nesta sua primeira incursão como realizador cinematográfico. A começar pela opção em uma história nem um pouco convencional e repleta de simbolismos, ao mesmo tempo provocadora e instigante, por mais que irregular.

    A trama acompanha uma trupe teatral, liderada por dom Aleixo (Lima Duarte, em breve e bela participação), que percorre o interior do Brasil em busca de locais onde possa se apresentar, a troco de comida e moradia. A chegada à uma cidade fantasma, dotada de uma fonte de água natural, serve como divisor de águas: enquanto dom Aleixo quer seguir em frente, em busca de novos públicos, o restante da trupe deseja permanecer no local e, aproveitando as casas disponíveis, assentar terreno.

    Por mais que tal embate não dure muito tempo, ele de imediato já quebra a expectativa devido à composição do elenco: Lima Duarte, o único ator conhecido do grande público, logo sai de cena. O fato dos demais serem completamente desconhecidos amplifica a sensação de que absolutamente tudo pode acontecer, já que o espectador não carrega consigo qualquer informação prévia - algo que funciona muito bem quando a história enfim alcança seu momento mais complexo e interessante.

    Dispostos a permanecerem no local, os integrantes da trupe acordam uma espécie de jogo coletivo: cada um deles elege uma função essencial para a nova cidade que está para ser formada e, após um rápido sorteio, cada um deles assume tal função. Tem início então um fascinante jogo da vida, onde as pessoas não apenas assumem as tarefas designadas, mas também suas características e mazelas. É como se, instigados por seus personagens, as sombras ocultas de cada um aflorassem de forma irremediável, aproveitando-se também da completa solidão existente em relação ao mundo exterior.

    Seguindo rumos inusitados e com atores cada vez mais convincentes como seus personagens sorteados, sempre mantendo uma certa individualidade, Weber instiga o espectador com provocações envolvendo preconceitos e oferece sequências visualmente lindas, como o encontro à noite entre os dois homens mais velhos, com suas respectivas barbas iluminadas. Há ainda uma clara analogia ao próprio teatro, no sentido de criador e criatura se mesclarem e afetarem um ao outro, como se todos estivessem em um transe coletivo.

    Com um elenco coeso e muito bem caracterizado, especialmente o trio formado por Cláudio Castro, Magali Biff e Marcio Rosario, Deserto entrega ainda um apuro técnico que chama a atenção, seja através do figurino e maquiagem de seus personagens, sempre com inspirações circenses, ou da bela fotografia que explora a vastidão e isolamento do local. O grande revés do filme é que, se por um lado a formação dos códigos desta nova cidade é apresentada de forma instigante, o mesmo não acontece em sua reta final. Citações a textos teatrais e um ensaio de metalinguagem surgem de forma gratuita, enquanto o desfecho soa um tanto quanto acelerado. Ainda assim, trata-se de um filme bastante interessante que não apenas surpreende, mas também desafia o espectador.

    Filme visto no 49º Festival de Brasília, em setembro de 2016.

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