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    Vida Selvagem
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    Vida Selvagem

    Família em chamas

    por Bruno Carmelo

    Uma família norte-americana dos anos 1950. A casa tem papel de parede, sofás de couro, rádios e televisões. A mãe se encontra na cozinha, preparando uma refeição para o marido, que chega do trabalho pronto para comer e abraçar o filho. O garoto está sentado no sofá, em frente à televisão, fazendo a lição de casa. O início de Wildlife corresponde à imagem cristalizada do American dream, estruturado na família patriarcal e no sucesso financeiro. No entanto, o pré-adolescente Joe (Ed Oxenbould) percebe que o casamento dos pais não vai muito bem. Quando o pai perde o emprego, a família corre risco de desabar. Mas não tem problema, contanto que todos fiquem juntos, certo?

    O filme propõe, de maneira elegante e violenta, a destruição deste imaginário social. Joe, com seu olhar amigável e comportado, não tem reação diante da partida do pai para trabalhar em incêndios nas regiões, nem diante da independência da mãe, que pretende trabalhar por conta própria e encontrar outro marido. O drama se constrói em torno da sensação de impotência e invisibilidade. Os personagens ficam em silêncio quando claramente têm algo a dizer, respondem que estão bem quando é óbvio que não estão.

    Paul Dano, um diretor estreante, se sai muitíssimo bem diante do complexo emaranhado familiar. Certamente, os diálogos ferozes são extraídos do romance homônimo, escrito por Richard Ford. Mas um elemento que chama a atenção é a estética adotada pelo cineasta. Ao invés de privilegiar os close-ups, Dano faz uso espetacular dos espaços amplos e vazios. A casa transmite a sensação de precariedade; o bairro onde Joe mora soa abandonado; o clima é sempre frio, inóspito, iluminado por um fraco sol que nunca se instala por completo. Wildlife transparece uma sensação inquietante de estarmos no meio de uma mudança, sem sabermos exatamente para onde.

    Neste sentido, a metáfora dos incêndios é muito bem-vinda. Jerry sonha em se tornar um herói à americana, apagando fogo nas regiões, mesmo que por um salário irrisório. Mas o novo emprego serve sobretudo de fuga do lar. A cena em que Jeanette e Joe se encontram diante de um incêndio carrega uma força ímpar, e o fogo volta a ter um papel especial rumo à conclusão. Quem realmente está queimando é a família, mas o único aspirante a bombeiro é o jovem garoto, incapaz de compreender a vida adulta ao seu redor – as referências à sexualidade e à criminalidade são particularmente fortes.

    A escolha do elenco pode surpreender. Carey Mulligan, acostumada a papéis de mulheres frágeis, tem em mãos uma figura extravagante e agressiva. Jake Gyllenhaal, pelo contrário, deve conter seus gestos expressivos em busca de uma vertente minimalista. Dano faz o elenco atuar contra seus pontos fortes, obtendo um efeito pelo menos inesperado. Num papel menor, Bill Camp oscila muito bem entre uma figura benevolente e predatória, dependendo da interpretação do público. É uma pena que Ed Oxenbould não tenha a oportunidade de expressar variação emocional: ele se encontra numa posição passiva, testemunhando tudo, mas sem ganhar cenas de catarse, nem metáforas que permitam expressar seu estado interno.

    Do mesmo modo, a sociedade faz falta neste filme que aborda, justamente, a ruptura de estruturas sociais. Estão ausentes o olhar dos vizinhos, o papel da religião, os parentes e amigos do pai e da mãe. Tudo ocorre neste núcleo de três pessoas que talvez se amem e se odeiem na mesma proporção. Dano faz questão de manter o projeto em chave intimista, psicológica. Se Joe não testemunha algo, o espectador também não o vê. O mundo em chamas, filtrado pelo olhar de um garoto de 14 anos, é confuso, instável, melancólico. Wildlife se conclui com uma cena belíssima, um grito preso na garganta que representa muito bem o projeto como um todo.

    Filme visto no 71º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2018.

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