A fábula das fábulas
por Bruno CarmeloHistoricamente, as fábulas infantis servem para ensinar às crianças, de modo lúdico, como evitar os perigos do mundo. Narrativas de João e Maria, Chapeuzinho e Vermelho e afins contêm ensinamentos sobre não ceder às conversas de estranhos, não se afastar muito de casa, respeitar os mais velhos etc. Antes das versões edulcoradas da Disney, os relatos orais transbordavam perversão, violência e forte conteúdo sexual. O filme turco Grande Grande Mundo remete a uma versão contemporânea das fábulas à moda antiga, acrescida de outros elementos clássicos da literatura universal.
Assim, além de João e Maria e Chapeuzinho Vermelho, temos também elementos de Romeu e Julieta ou mesmo da narrativa bíblica de Adão e Eva. A história se passa numa floresta, onde os irmãos órfãos Zuhal (Ecem Uzun) e Ali (Berke Karaer) fogem da família adotiva que pretende abusar sexualmente da garota. Escondendo-se do mundo onde todos os adultos são predadores desumanos, eles inevitavelmente se aproximam num flerte que beira o incesto. A ideia de ambos é obter dinheiro o suficiente para, depois de um tempo, retornarem à vida na cidade. Enquanto isso, sobrevivem como podem na natureza.
Como de costume nas fábulas, metáforas da natureza são apresentadas em cada cena: um bode passa a representar a figura paterna ausente, a cobra torna-se símbolo de pecado cada vez que o ato sexual se insinua, frutas selvagens funcionam como a maçã de Eva. Mais uma vez, a mulher é a pecadora, para a tristeza do homem forte que tenta protegê-la. A representação de gêneros pode incomodar o público contemporâneo: as mulheres oscilam entre santas (Zuhal) e prostitutas (a mulher do circo que seduz Ali), enquanto os homens são conquistadores, sexualizados, fortes. Eles foram feitos para a vida pública, elas se mantêm preservadas apenas na esfera privada ou doméstica.
Cabe uma pergunta sobre a ideologia do projeto: qual o sentido de resgatar histórias de décadas atrás sem atualizar o discurso? Por mais que a produção cuidadosa constitua inegavelmente uma obra dos nossos dias (temos planos aéreos com drones, grandes movimentos de câmera e uma produção de porte considerável), o mundo retratado soa anacrônico. A comunicação se rompe: Grande Grande Mundo, com suas cenas de sexo e violência, não busca o espectador infantil das fábulas de Esopo e Lafontaine, nem apela ao imaginário nostálgico dos adultos. Para quem já testemunhou por si mesmo os perigos do mundo adulto, talvez a cautionary tale turca tenha pouco a oferecer.
O resultado transita de maneira heterogênea entre o mundo de antigamente e a sociedade contemporânea, entre o realismo e o fantástico, entre o natural e o kitsch. Para cada instante de fotografia verossímil durante o dia (com algumas cenas deslumbrantes, diga-se de passagem), temos luzes fantásticas e providenciais nas cenas noturnas. Para cada ato de sobrevivência executado por Ali e Zuhal, temos outros de função menos clara, como as figuras loucas perambulando pela floresta. Na confusão dos elementos, sobram belas imagens, destacam-se boas atuações – do garoto, principalmente – mas perde-se a moral da história, a conexão com o século XXI.
Filme visto no 6º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba, em junho de 2017.