O trem para lugar nenhum
por Bruno CarmeloUm trem fretado pelo governo recebe ordens de entregar uma carga misteriosa na fronteira da Bolívia. Os policiais encarregados da tarefa não sabem exatamente do que se trata, mas a mídia especula que sejam minerais tóxicos, podendo contaminar o ar e a terra. Partindo à surdina, os policiais começam a enfrentar a ira dos moradores, que desafiam a autoridade do grupo, sabotando a viagem. Diante de trilhos arrancados, bloqueados e incendiados, o trem faz voltas e mais voltas, parecendo nunca sair do lugar.
O início deste filme pode causar estranhamento. A diretora Júlia Vargas-Weise apresenta os personagens como numa telenovela (o major vilão, a esposa troféu, o maquinista desacreditado), usando imagens em cores saturadas e muitos closes. Ela parece construir os estereótipos apenas para desconstrui-los depois. Isso porque, ao longo do percurso, cada tipo preciso começa a se alterar, laços de amizade se formam e os personagens se humanizam.
A narrativa desenvolve uma sensação de absurdo um tanto kafkaiano. O trem vai para todas as cidades, depois faz meia volta, percorre os mesmos bairros, e os moradores atacam o veículo sem nenhuma subserviência à autoridade policial. A trama desconstrói a noção de hierarquia: dentro do trem, as ordens rígidas do major aos seus subalternos passam a valer cada vez menos, lá fora, o povo percebe que, unido, pode facilmente impedir a passagem da carga perigosa. Como nenhuma autoridade explica o conteúdo das caixas seladas nem assume a responsabilidade pelo trajeto, os personagens ficam presos e começam a perceber a artificialidade das próprias estruturas de poder que os sustentam.
Existe, portanto, uma alma contestadora neste pequeno episódio da história boliviana. Através do trajeto errante, o roteiro consegue unir vários pontos do país num único descontentamento contra o governo autoritário. Aos poucos, os policiais também perdem a fé na própria tarefa, e passam a se identificar com os moradores que os rechaçam. Dentro do trem, cria-se uma atmosfera de família, com revolucionários (o maquinista) e conservadores (o major) unindo-se para seguirem caminho. A metáfora da união do povo como única forma de progresso fica bastante clara.
Apesar dos símbolos bem orquestrados, Carga Sellada sofre com diversos problemas de produção. A fotografia nas cenas dentro das casas é muito fraca (melhorando nas cenas de dentro do trem), a captação do som direto tem deficiências, os grandes planos da paisagem são particularmente mal editados, e duas cenas de morte ganham uma decupagem frágil. Trata-se de uma obra de recursos limitados, comandada por uma equipe ainda pouco experiente. Mas existe ousadia no filme, tanto em termos ideológicos quanto narrativos, superando os pontos fracos do percurso.
Filme visto no 44º Festival de Cinema de Gramado, em agosto de 2016.