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    Não Olhe
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Não Olhe

    Fábula da garota reprimida

    por Bruno Carmelo

    Maria (India Eisley) está prestes a completar 18 anos. No entanto, a chegada à vida adulta não implica nenhum senso de liberdade ou conquista social: a jovem tem pouquíssimos amigos, mantém uma relação fria com os pais, jamais teve namorados ou pretendentes, não demonstra ambições específicas para o futuro. Ao seu redor, o ambiente transpira erotismo: a única amiga, Lily (Penelope Mitchell) troca beijos e carícias com o namorado na frente de Maria; o pai (Jason Isaacs), um cirurgião plástico, venera a beleza feminina e sai com várias pacientes; a mãe, uma antiga rainha de beleza (Mira Sorvino), torce por mais intimidade com o marido; e na escola, o baile de formatura traz a obrigação velada do sexo.

    O principal conflito da protagonista, portanto, é de ordem sexual. Um garoto ameaça-a, sugerindo a iminência do estupro, enquanto o namorado de Lily parece flertar com ela, acenando à possibilidade da relação sexual. Um dia, a garota explode, projetando no reflexo do espelho uma versão alternativa de si mesma, ou ainda seu exato oposto: Airam (o contrário de Maria, é claro), uma jovem perversa, sexualizada, cínica, violenta. Airam seria o ID para o ego de Maria, enquanto o alter-ego se encontraria no espelho, uma fronteira supostamente intransponível. No entanto, quando a jovem permite que essas duas figuras troquem de lugar, a metade reprimida é obrigada a assistir, presa no espelho como uma voyeur privilegiada, à concretização de seus desejos mais profundos.

    Não Olhe se apresenta como uma curiosa fábula psicanalítica, incomum no circuito comercial. Ela dialoga com o ótimo suspense recente Por Trás dos Seus Olhos, que também se aventurava pelos desejos sexuais femininos como algo incontrolável e potencialmente assustador para os homens. Assim que Airam rouba a vida de Maria, são os homens que se apavoram: o pai, o melhor amigo e o principal inimigo se apavoram com a figura da mulher possivelmente castradora (vide a cena do bastão de hóquei). O suspense e o terror se transformam em meras ferramentas capazes de criar a ambientação e permitir a entrada de elementos fantásticos sem ruptura na verossimilhança.

    Por este motivo, a representação da violência é bastante branda, enquanto a nudez e o sexo ganham cenas muito mais fortes. A nudez frontal de Maria/Ariam, o sexo um tanto cru entre adolescentes e um momento de assédio no corredor da escola constituem uma ousadia às produções adolescentes de Hollywood, ao passo que as agressões surpreendem pelo aspecto fetichista: muitas explosões de violência ocorrem fora do enquadramento, através da sugestão dos sons. Uma excelente cena de perseguição sobre o gelo termina em morte sem que o agressor sequer encoste em sua vítima: tudo ocorre pela ambientação e pelas sugestões de montagem, de enquadramento, de trilha sonora. Guardadas as proporções, o diretor Assaf Bernstein apresenta a sua versão para a cena do chuveiro de Psicose, ressaltando o poder sugestivo da linguagem cinematográfica. Em paralelo, homenageia Carrie, a Estranha na cena da festa de formatura.

    Nem tudo são flores neste exercício cinéfilo. O diretor demonstra criatividade limitada ao repetir os enquadramentos no corredor da casa e dentro do banheiro, em frente ao espelho, enquanto India Eisley revela poucos recursos dramáticos para um papel de Cisne Negro que ofereceria tantas possibilidades. As limitações da intérprete freiam o potencial narrativo de algumas cenas importantes, ainda que Eisley contracene com atores talentosos como Jason Isaacs e Harrison Gilbertson. Não Olhe jamais esconde a sua veia de filme B – devido à explicitação quase grosseira de diálogos e símbolos que outras produções apenas sugeririam -, o que cria momentos tão absurdos narrativamente quanto instigantes em termos cinematográficos e de gênero. O afrontamento da garota diante do pai, que mantém uma relação próxima do assédio com a filha, fere a noção de “bom gosto” cinematográfico ao escancarar a temática do abuso sexual de uma maneira que a maioria dos diretores preferiria evitar.

    A conclusão da trama pode despertar apreensão. Quando o alter-ego violento se sobrepõe por completo à versão recatada, o roteiro parece acenar à mensagem de que liberar seus impulsos seria um perigo, sendo necessário portanto praticar a repressão dos instintos de sexo e de morte. Ou seja, Maria precisaria voltar à condição de jovem virginal para não representar um perigo à sociedade. Felizmente, o projeto foge a esse caminho conservador com um desfecho ambíguo e inteligentíssimo: Bernstein brinca mais uma vez com a linguagem cinematográfica, mais especificamente com o efeito da persistência retiniana – o fato de enxergarmos uma sequência de imagens fixas como se estivessem em movimento, devido à velocidade da alternância dos quadros – para sugerir uma alternância fluida, e interminável, entre os dois lados da mesma menina.

    Entre fenômeno sobrenatural (a sombra no espelho), manifestação psicológica (o trauma de infância) e questão biológica (os duplos/gêmeos), o filme se abre a uma pluralidade de leituras através desta jornada de emancipação sexual e identitária. Qual é o limite entre a repressão dos desejos necessária à vida em sociedade (não se pode sair matando qualquer um que se deseje, por exemplo) e a repressão nociva à expressão individual? Todos nós temos os dois lados, como a protagonista? Eles precisam ser opostos e excludentes, ou podem conviver um com o outro? Por trás da aparência trash, esta Alice descobre tanto sobre o mundo quanto sobre si mesma a partir do momento em que atravessa o espelho.

     

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