Todas as mulheres do artista
por Bruno CarmeloA cada nova biografia de uma celebridade nos cinemas, o espectador pode se questionar sobre o ponto de vista em relação ao biografado: trata-se de um projeto de viés informativo, mesmo didático? Uma análise crítica? Uma adoração e homenagem? Egon Schiele - Morte e a Donzela se encaixaria na última categoria. Para além da incoerência de propor uma obra convencional sobre alguém fora dos padrões, o filme se limita a incorporar a nobreza de seu personagem central: a obra se tornaria importante por abordar a vida de alguém importante. Seu mérito seria extrínseco, extra-filme. Estamos num curioso terreno da autoralidade às avessas, no qual o diretor se eclipsa para deixar o astro brilhar.
O diretor Dieter Berner embebe sua narrativa numa solenidade própria às produções de época: ostensiva recriação de figurinos e cenários, luxuosos movimentos de câmera (incluindo o uso de drones para retratar o início do século XX!), cores frias para a morte do artista, cores vivas para os flashbacks durante o apogeu boêmio. A intenção é retratar a vida pessoal de Egon Schiele (Noah Saavedra), em especial a sua relação com as musas e esposas. O roteiro é pautado por uma sucessão de mulheres: a irmã Gerti (Maresi Riegner), com quem desenvolve uma relação incestuosa, a fogosa Moa (Larissa Aimee Breidbach), a amante intermitente Wally (Valerie Pachner), a romântica Adele (Elisabeth Umlauft), a amargurada Edith (Marie Jung). Egon pula de cama em cama, frequentando mulheres se apaixonam com facilidade, mesmo quando são tratadas com frieza pelo artista.
Na incursão pelos amores, o roteiro deixa de lado dois aspectos importantíssimos da trajetória do protagonista: primeiro, a sua própria obra, pouco valorizada ou investigada pelo estilo e evolução, e segundo, as polêmicas acusações de incesto e pedofilia. A narrativa cita rapidamente os problemas de Egon Schiele na justiça, mas toma a defesa do pintor. O suposto abuso sexual de uma garotinha é abordado pelo filme de modo ambíguo, quase banal. A imagem do olhar libidinoso a uma adulta e uma criança deitadas na cama deixa os fatos em aberto, apenas para insinuar, pela montagem e pela inconsequência dos atos, que não importam realmente. A isenção moral diante da possibilidade de pedofilia constitui uma postura bastante repreensível.
Hoje, este personagem seria considerado machista, explorador ou, no mínimo, insensível em relação às pessoas que o cercam. No entanto, Berner prefere enxergá-lo como alguém que “amou demais”, viveu intensamente e sacrificou a sua vida pela arte. As agressões seriam um preço a pagar pela obtenção de quadros e desenhos tão belos, enquanto a instabilidade emocional constituiria um traço comum aos pintores geniais – vide a representação condescendente em relação ao assédio praticado por Gustav Klimt (Cornelius Obonya). Estas sugestões reforçam a sacralização do artista e defendem a virilidade à moda antiga. Em pleno século XXI, o pintor ainda é analisado com os olhos do início do século XX.
Esteticamente, o cineasta mostra-se indeciso entre de fato mostrar o sexo, parte importante da vida deste jovem, e ocultá-lo para não chocar audiências e garantir maior alcance comercial. Às vezes, a nudez é tolerada, em outros momentos, a montagem corta o sexo e retoma no dia seguinte, com os personagens devidamente cobertos por um lençol. A ânsia de Egon Schiele pela pintura tampouco é desenvolvida, ao passo que sua personalidade se transforma de modo incoerente: no início, ele não demonstra o menor interesse na remuneração pelas pinturas, mas pouco tempo depois, aceita retratar qualquer mulher, contanto que pague.
O pintor termina a obra de maneira opaca, indefinida. Ele é visto na terceira pessoa, pelo olhar desejante das mulheres, sem manifestar ideias e intenções por si próprio. Não conhecemos o mundo pelos seus olhos, nem pela interpretação social ou psicológica de sua arte. O espectador conhecerá os principais passos de sua curta vida e a origem do quatro “Morte e a Donzela”, mas não a personalidade por trás do artista.