Missão cumprida
por Francisco RussoTantas gerações cresceram lendo as histórias em quadrinhos da Turma da Mônica, ou vendo seus desenhos na televisão ou indo ao cinema acompanhar animações emblemáticas, como A Princesa e o Robô. Para estes, mais que a familiaridade há o carinho existente com personagens que os ajudaram a crescer, seja divertindo ou até ensinando. Vê-los agora em carne e osso, mais que um sonho, é acima de tudo uma imensa responsabilidade. Afinal de contas, como respeitar toda esta turma que os acompanhou ao longo de tantos anos, sem deixar de lado a necessária atração aos mais jovens?
A resposta começou a ser delineada em 2013, com o lançamento da graphic novel "Laços", de autoria dos irmãos Vitor e Lu Cafaggi. Nela, Mônica, Cebolinha, Magali e Cascão (e tantos outros da turminha) foram apresentados em uma versão mais realista, como se existissem de fato. O sucesso foi tão grande que duas sequências vieram na esteira, "Lições" e "Lembranças", assim como a adaptação para o cinema. Para comandá-la, Daniel Rezende. Indicado ao Oscar como montador por Cidade de Deus, ainda virgem na direção - o ótimo Bingo - O Rei das Manhãs não havia sido lançado. Era uma aposta ousada, de lado a lado. Deu certo.
Fã inveterado de "Turma da Mônica - Laços", tal característica fica escancarada em cada minuto de sua adaptação cinematográfica graças ao profundo respeito com o qual o diretor trabalha o material que tem em mãos. Mais que apenas espelhar a bela aventura criada pelos Cafaggi, vai além ao trabalhar com extrema competência ícones tão profundamente marcados no imaginário coletivo, seja através de teorias, lembranças ou meras cenas emblemáticas. Como não abrir um sorriso ao ver Cascão saindo de dentro de uma lata de lixo ou quando Magali surge tentada por uma melancia? Como não rir ao ouvir a ingênua petulância tão condizente com Cebolinha em seu "gênio cliando"? Como não se encantar com a impressionante personificação de Giulia Benite como Mônica?
Se o jogo já estava bem encaminhado, Daniel Rezende vai além. A partir de uma minuciosa direção de arte, trouxe à vida o bairro do Limoeiro e contornos reais a tantos personagens ficcionais, alguns de forma espantosa - é impressionante a caracterização de Fafá Rennó como Dona Cebola. Cuidadoso ao não propagar a violência, mantém a Mônica briguenta mas repercute tais momentos apenas através de onomatopeias e expressões de quem está à volta - um belo meio de contornar uma situação delicada nos dias atuais, sem trair a essência da personagem. Ao mesmo tempo em que constrói uma ambientação que flerta com o passado - o figurino dos pais, o telefone de gancho, a praça com coreto, o vendedor de balões -, dialoga com o presente através do gestual das crianças e expressões típicas do cotidiano, como "só que não". Insere, aqui e ali, easter-eggs de todo tipo para serem descobertos pelos fãs dos quadrinhos, sem jamais limitar quem não os perceba - dica: atenção às matérias nos jornais!
Há muito a ser elogiado em Turma da Mônica - Laços, em relação aos aspectos técnicos. Entretanto, mais importante ainda é a manutenção da essência do que é a Turma da Mônica em relação à amizade. Neste sentido, é também preciso elogiar não só a precisa seleção do elenco infantil mas, especialmente, o trabalho feito para que tal dinâmica do quarteto soe orgânica. Mais uma vez, ponto para o diretor e sua equipe.
Apesar de tantos acertos, é também necessário apontar algumas inconstâncias. A maior delas, sem sombra de dúvidas, é o estranhíssimo tom esverdeado desbotado usado nos efeitos especiais do Floquinho. De ritmo intencionalmente mais lento, o filme por vezes carece de maior agilidade, especialmente quando o quarteto adentra a floresta - o que pode ser um problema especialmente ao público mais jovem, tão acostumado com o ritmo frenético dos recentes blockbusters. Além disso, há ausências sentidas em relação à graphic novel, como os flashbacks de Cebolinha quando bebê - até compreensíves, diante da dificuldade em rodar tais cenas - e o abandono das fantasias, que tanto marcam o lado lúdico das crianças na história dos Cafaggi.
Por outro lado, há o Louco. Em boa performance de Rodrigo Santoro, que se despe dos cacoetes habituais, a participação do personagem diverte pelo inusitado e também pelo jogo de câmeras implementado, potencializando a teoria com a qual o filme flerta escancaradamente. Há também a bela trilha sonora de Fabio Goes, não só pelas composições em tom de aventura mas, também, pela bela piada com uma canção bem conhecida da música popular brasileira. E há também brincadeiras divertidíssimas em torno das características dos personagens nas HQs, como a genial sequência envolvendo sapatos.
A partir de sua devoção pessoal ao universo criado por Maurício de Sousa - que surge em breve participação especial -, Daniel Rezende construiu não só um filme que respeita profundamente ao fã, mas também uma aventura que não menospreza as crianças, ao tratá-las com sensibilidade e inteligência. De forte apelo nostálgico, seja pelo histórico da relação dos personagens com seus leitores ou mesmo pela ambientação proposta, com ecos do presente e do passado, Turma da Mônica - Laços é um filme encantador. Não se surpreenda se, ao assisti-lo, cair uma - ou duas - lágrimas, aqui e ali. O filme não só proporciona tal emoção, como é um projeto que toca fundo naquela sensação tão maltratada nos dias atuais que é ser brasileiro.