Relacionamentos tóxicos
por Bruno CarmeloApesar das aparências, esta não é uma história de amor. A frase “Eu te amo” é proferida algumas vezes, discretamente, em tom de ironia ou desespero. Mas é difícil saber se o estilista Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis) algum dia amou a sua musa, Alma (Vicky Krieps), e se foi correspondido. Os sentimentos entre eles são complexos, envolvendo ciúme, inveja, admiração, ódio, posse, provocação, carência, companheirismo. O amor, caso apareça em algum momento, seria a menor das coisas. Trama Fantasma é um raro filme sobre o potencial destrutivo dos relacionamentos amorosos.
Alma não é a primeira musa inspiradora de Reynolds, e nem seria a última. O homem poderoso, acostumado a ter dezenas de funcionários, familiares e mulheres bajulando-o diariamente, escolhe Alma como quem compra um novo vaso para a sala de estar. Ela fica surpresa quando descobre que seu corpo comum se presta aos vestidos de luxo confeccionados por ele. “Você não tem seios”, ele afirma no primeiro encontro, com brutalidade. “Mas eu posso te dar seios, se eu quiser”, completa. Reynolds gosta de um desafio. Ele também gosta de possuir, sejam coisas ou pessoas - o que, no caso dele, não tem muita diferença.
O melhor aspecto do roteiro de Paul Thomas Anderson é confrontar o homem branco, heterossexual e privilegiado a uma mulher igualmente forte. Alma não está disposta a acatar todas as ordens do macho caprichoso. Aos poucos, começa a testar os limites da autoridade masculina, impondo-se e provocando uma verdadeira revolução dentro do patriarcado rígido da casa de costura Woodcock. O filme alimenta uma guerra progressiva e silenciosa, um ataque violento disfarçado pela elegância das roupas, das palavras. Por trás de tanta cortesia, as pessoas se detestam.
De certo modo, o egocentrismo de Reynolds faz do personagem um parente próximo do escritor manipulador (Javier Bardem) de Mãe!, também acostumado a ter suas musas apenas para servi-lo. Mas enquanto Darren Aronofsky transformava a relação entre ambos num circo grotesco, Paul Thomas Anderson prefere abordar a hipocrisia, os subentendidos. Ou seja, ele se foca no contraste entre o fundo e a forma, a aparência e a essência. Quanto mais tempo Reynolds e Alma passam juntos, menos saudável se torna a relação. A convivência com a autoritária irmã do estilista, Cyril (Lesley Manville), funciona na mesma chave da desaprovação mútua e tácita. O trio formado por Day-Lewis, Krieps e Manville se equilibra em atuações impecáveis, oscilando entre a gentileza e a agressividade, às vezes numa mesma cena.
Este desfile sobre a hipocrisia dos ricos torna-se pungente graças às escolhas de direção. Acostumado a fotografar os espaços, desta vez o cineasta privilegia as pessoas, os rostos. Em planos muito próximos, capta cada ruga, cada olhar de desaprovação, cada pele descascada nos dedos segurando agulhas. A câmera investiga os personagens como se quisesse entrar neles, conhecê-los melhor, saber o que de fato pensam por trás dos sorrisos educados. Uma escolha é particularmente interessante: alguns atores olham diretamente para a câmera, mas não quebram a quarta parede, nem se comunicam com o espectador. O olhar é vazio, atravessa a câmera, num recurso glacial condizente com a comunicação retórica entre os personagens.
Ao mesmo tempo, temos um cinema clássico, adequado à época em que se passa e também à descrição das castas britânicas. A belíssima fotografia em 35mm oferece uma textura que o cinema perdeu recentemente, mas já soa “antiga” em tempos do cinema digital. A iluminação se encarrega de representar o peso e a materialidade de cada tecido, algo acentuado pelo trabalho preciso de som. A montagem permite que as cenas tenham tempo para o silêncio, a contemplação, o desconforto, como a indústria americana produz cada vez menos. Na disputa pelo Oscar 2018, este talvez seja o filme mais elegante, intelectual, e também o mais afastado da linguagem pop que contaminou até as produções indie – vide Três Anúncios Para um Crime, A Forma da Água etc.
Para completar, a trilha sonora com composições instrumentais ao piano marca a transição entre a maioria das cenas, correspondendo ao ambiente erudito e codificado no qual vivem os personagens. Mesmo assim, o projeto rompe com toda idealização: do luxo, da felicidade, do amor. Existe uma “atmosfera de morte discreta” nesta casa, se queixa Reynolds. Esta sensação poderia ser aplicada ao resultado como um todo. Paul Thomas Anderson cria um deslumbrante filme de fantasmas, povoado por figuras efêmeras, ressentidas, amarguradas. Isto certamente não é amor. Talvez seja o seu avesso.