Dizer que Bacurau é “um filme necessário para o atual momento do Brasil” é algo simplório demais – tendo em vista que a filmografia espetacular de um de seus realizadores, Kleber Mendonça Filho, é composta por longas extremamente importantes em escancarar as mazelas que a desigualdade social deixa em nossa sociedade – seja em O Som ao Redor ou o primoroso Aquarius, seus filmes tem o hábito de deixar a mente do espectador se expandir ao máximo que pode, a fim de raciocinar o suficiente e avaliar o que é visto em tela – junto do novato (na direção) Juliano Dornelles, Mendonça consegue elevar suas qualidades e habilidades cinematográficas para fazer deste Bacurau um exercício formidável de gênero e ainda inserir uma critica social poderosíssima.
Uma das coisas que mais impressionam aqui é que a pequenina cidade de Bacurau retratada no longa consegue representar todas (sem exceção) as classes menos favorecidas do nosso país – sejam os mais pobres, nordestinos, homossexuais e os negros – como se o fato dela ser esquecida pelo resto da população fosse um triste paralelo com as elites não se importando em ajudar ou se conscientizar sobre as condições de vida impostas aos mais humildes – mesmo que permeando magnificamente com elementos de outros gêneros, os diretores proporcionam uma verdadeira viagem alegórica sobre as formas que o brasileiro precisa se defender (literalmente até) da ameaça de seres esnobes, preconceituosos e (de fato) fascistas – mas, ainda assim, se esquivando completamente de qualquer senso moral barato.
Logo de inicio, somos apresentados ao penoso caminho pelo sertão até chegarmos em Bacurau – se passando alguns à alguns anos no futuro, acompanhamos o caminhão pipa, único meio de ter água potável no lugar, levando, de carona, a Dra. Teresa (Colen), que está voltando para sua cidade natal para o enterro de sua avó, Dona Carmelita (Lia de Itamaracá), falecida aos 94 anos e muito querida por todos os habitantes – logo após o evento, coisas estranhas começam a acontecer na cidade: a visita de dois turistas em motocicletas (Teles e Saboia), o avistamento de um drone, tiros no caminhão pipa e algumas mortes misteriosas, fazem que Acácio (Aquino), Teresa, Domingas (Braga), Plinio (Rabelo) e outros habitantes suspeitem que o local possa estar sendo vitima de alguma invasão – o que os levam a pedir ajuda ao procurado pela justiça, Lunga (Pereira) – logo, ajudando todos a se prepararem contra uma terrível ameaça.
Nos moldes mais certeiros de um faroeste moderno ou thriller de ação, Bacurau possui uma trama até simples – mas isso não é um problema – o que importa aqui é a abordagem exemplar de seus cineastas – sabendo colocar suas criticas sociais de forma sutil, mas, muitas vezes, em diálogos absurdamente verdadeiros, o suspense em torno da história é gritante, mostrando uma segurança exemplar na narrativa – não me atrevo a dizer que exista alguma tomada desnecessária ou errada nesse filme – cada momento tem uma função; cada enquadramento tem um sentido – característica forte de Mendonça – como seus pontuais flashs de memória, que sempre ressaltam a natureza por de trás de seus magníficos personagens – desta vez, ele opta por mostrar, por exemplo, um pouco do passado do compenetrado Acácio (o “Pacote”) de Thomas Aquino através de uma chamada de jornal, que mais parece uma reportagem do programa do Datena (e tenho quase certeza que essa foi a intenção) – reparem também nas tomadas áreas, como a que abre o longa, mostrando o Brasil (e Bacurau) como se estivessem sendo monitorados do espaço; além da visão dos drones.
Tecnicamente impecável, o filme ainda ganha muitos pontos pela linda direção de fotografia de Pedro Sotero, que consegue deixar os vilarejos e paisagens do nordeste tão lindos quanto são na vida real – os enquadramentos para os momentos de ação são precisos e bem explicados visualmente, além dos impressionantes (e fortes) efeitos de maquiagem; sem falar que a edição de som e imagens não fica abaixo de nenhuma obra de ação norte-americana – um verdadeiro trabalho visionário, em todas as suas características técnicas.
A construção de personalidade em todos os envolvidos é um primor do roteiro assinado pelos próprios diretores – temos a chance de vermos Sônia Braga exibir todo seu brilho com sua Domingas, uma mulher que possui uma presença tão forte que nem mesmo um assassino estrangeiro armado ou um politico querendo prejudicar outras mulheres é capaz de abala-la; ou a forte imagem de imponência de Silvero Pereira como Lunga – sem dúvida, um dos destaques, mesmo que em participação não tão longa, mas evidenciando com seu personagem um lado tão poderoso de ambiguidade, que o torna uma construção de personalidade tão marcante quanto o Coringa de Joaquim Phoenix – posso estar exagerando, mas que em questões sociais se assemelha, isso é fato – Lunga é considerado um bandido para a sociedade, mas diante da ameaça gerada pelo próprio estado ele acaba sendo a salvação – e isso, obviamente, não é “defender criminoso” – é apenas um reflexo do que muito ocorre no Brasil.
Alias, se com nossos representantes nacionais essas reflexões se mostram profundas, Mendonça e Dornelles não tem medo algum de expor o lado opressor, preconceituoso e racista de uma parte da sociedade brasileira: vivendo os supostos turistas que se aventuram em motos próximos a Bacurau, Karine Teles (esta que representou algo parecido em Que Horas Ela Volta?) e Antônio Saboia são uma perfeita representação do achismo de nossa elite em se julgarem superiores – algo que resulta no diálogo mais polêmico da obra, talvez – quando estes dois personagens conversam com a misteriosa equipe liderada pelo Alemão Michael de Udo Kier (em ótima composição, assustadora e fria ao extremo) – “somos de uma região rica do Brasil, no sul” – e a resposta é desconcertante para eles: “vocês não são brancos” – quando nos apresenta a estrangeiros, Bacurau deixa claro como nossos governantes não estão dando a mínima para o bem estar do povo – se no longa isso é representado pela cidade que acaba sendo tirada do mapa e sendo vitima dos verdadeiros criminosos da história, na vida real isso pode ser traduzido como o descaso de privatizações e falta de assistência pública em saúde, segurança e educação – que, realmente, obrigam a população a “se virar” para sobreviver – nesse sentido, a figura (propositalmente) exagerada e comedida do prefeito Tony, vivido por Thardelly de Lima, é um retrato brilhante destas graves falhas do estado brasileiro.
Com um elenco composto em sua grande maioria por atores pernambucanos, Bacurau possui uma naturalidade absurda em seus diálogos – com artistas que parecem estar interpretando eles mesmo – isso, por si só, já é um mérito enorme – mas elevar isso tudo dentro de um clima de ação e suspense, é algo que poucos conseguiriam – é algo que me deixou tão feliz quanto ver um senhor idoso destruindo o tom esnobe da personagem de Karine Teles somente com sua voz e um violão; ou ao ver que homens e mulheres do nosso tão rico nordeste são muito mais fortes que os pobres de alma, sejam os “gringos” ou nossos “falsos patriotas”.
Essa luta, com certeza, faz com que nem Bacurau (tanto o filme quanto a cidade representada nele) e nem nossa população guerreira sejam esquecidos. Alias, a união de todas as classes desfavorecidas que citei é o que as fazem não desaparecer do mapa.
Unidos, nós somos o mapa!