A corrupção do homem comum
por Bruno CarmeloHernán Blanco (Ricardo Darín) é um homem comum. Bom, não exatamente, pois ele acaba de ser eleito presidente da Argentina. Mas sua campanha eleitoral foi inteiramente baseada na aparente neutralidade do candidato, um pai de família sem escândalos, um governante de pouca experiência. Na época em que o “político de carreira” é visto como uma pessoa intrinsecamente corrupta, Hernán transmite a aparência de pureza, mesmo que o roteiro revele, desde a primeira cena, o histórico de corrupção do personagem.
O homem pouco conhecido gera apreensão pelos parceiros da América do Sul, ansiosos para conhecer seu posicionamento e suas alianças. Durante uma reunião de líderes no Chile, visando estabelecer uma Aliança Petroleira exclusiva das nações sulistas, ele deve se posicionar: ou opta pela dominação ao capital americano (representado por um malicioso Christian Slater) ou pela submissão ao poder brasileiro (representado pelo vilanesco e caricatural Leonardo Franco). Como se impor, como continuar sendo “comum” em tal posição de destaque? De que privilégios ele dispõe através desta imagem pública?
A Cordilheira efetua essas perguntas e mais algumas em relação às manipulações necessárias ao cargo. O roteiro do jovem diretor Santiago Mitre ostenta uma ambição profunda, buscando conhecer os perigos do poder pelo aspecto institucional, moral e psicológico. Para isso, constrói um suspense tipicamente hitchcockiano, no qual o espectador está sempre um passo atrás dos políticos em cena. Enquanto tentamos adivinhar quem está de qual lado, a trilha sonora insiste na tensão crescente, a câmera desliza por corredores como se a imagem nunca parasse, e a paisagem massiva e solitária da Cordilheira dos Andes sugere o perigo, ou algo próximo da loucura.
Por falar em loucura, a filha de Hernán, Marina (Dolores Fonzi) comparece à reunião, quando sofre um surto psicótico e para de falar. A solução é chamar, de urgência, um famoso psiquiatra (Alfredo Castro) para curá-la através da técnica da hipnose. A presença desta subtrama torna o filme ainda mais misterioso. Não se delimita de que maneira a esfera familiar contamina o drama político, embora alguns elementos, em especial os cavalos, sejam usados com força ímpar. O uso da hipnose poderia remeter às estratégias hitchcockianas, no entanto, Mitre se nega a adotar o didatismo do diretor britânico. Existem diversas relações possíveis entre os traumas passados de Marina e as atuais relações do pai, mas o roteiro deixa que o espectador encontre a sua própria associação. O roteiro, inclusive, se conclui numa dúvida, uma interrogação. O projeto prefere confundir a esclarecer.
Para o público brasileiro, a reunião política pode ter uma relevância particular pela crônica de um presidente que diminuiu brutalmente a miséria e investiu na educação, apesar de ser populista demais. A representação de Lula encontra identificação direta em nossa História, além de contrastar absolutamente com as estratégias oligárquicas do governo atual. A possibilidade iminente de um golpe de Estado financiado pelos Estados Unidos também relembra os momentos mais sombrios da trajetória do país. Existem elementos dolorosamente verossímeis no pesadelo construído por Santiago Mitre. Assim como nos pesadelos, os símbolos se acumulam em temporalidades fluidas, e a narrativa lacônica se interrompe subitamente. O que vimos foi realidade, ficção, loucura, fantasia? O término de A Cordilheira produz a incômoda e instigante sensação de acordar de um sonho ruim.
Filme visto na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2017.