Para que servem os sonhos
por Vitória PratiniNão é incomum vermos filmes live-action que contam (ou recontam) a origem de personagens clássicos dos contos de fadas, eternizados nas telas pela Disney. São os casos dos recentes Cruella, com Emma Stone, e Malévola, com Angelina Jolie, que acompanham as vilãs das animações Os 101 Dálmatas e A Bela Adormecida, respectivamente. Alice e Peter: Onde Nascem os Sonhos tem uma proposta não muito diferente. O filme, que também traz Jolie no elenco, reimagina a origem de Alice no País das Maravilhas e Peter Pan com viés que mistura realismo e fantasia. O resultado é um longa-metragem doce e lúdico, que exalta o poder da imaginação como refúgio, mas que pode deixar o público com um gosto amargo na boca.
Qual é a origem de Alice no País das Maravilhas e Peter Pan?
Originalmente lançado no Festival de Sundance, a trama é ambientada no interior da Inglaterra durante a Era Vitoriana e acompanha a família Littleton. Os pais, Jack e Rose (não necessariamente a ver com Titanic, apesar dos nomes), são um casal interracial, o que sugere a dinâmica em como as pessoas lidavam com o preconceito social no “mundo civilizado” daquela época (a exemplo de Bridgerton e o “colour-blind casting”). Interpretados pelos excelentes David Oyelowo (Selma - Uma Luta Pela Igualdade) e Angelina Jolie, eles incentivam a criatividade de seus filhos, ao contrário da tia esnobe Eleanor (Anna Chancellor, convincente no papel).
Neste contexto, Alice (Keira Chansa) e Peter (Jordan A. Nash) são irmãos e deixam a imaginação correr solta durante um verão através de brincadeiras com espadas, chás da tarde e navios piratas. O filme tem um início intrigante e mágico, repleto de referências às suas histórias originais. A produção ainda faz uma ótima conexão com Wendy e seus irmãos, de Peter Pan.
Porém, tal como na vida, a realidade surge como um balde de água fria. E as crianças nem precisaram crescer para que isso acontecesse! Após uma tragédia, o tom do filme muda. As expressões dos personagens ficam mais pesadas; a fotografia e temperatura se tornam acinzentadas, acompanhando o sentimento dos personagens. O realismo toma conta do roteiro: à medida em que o vício de Jack reaparece e Rose desenvolve um gosto por bebidas alcoólicas, os filhos mais novos se refugiam em suas respectivas terras de fantasia, Terra do Nunca e País das Maravilhas. Até mesmo o “riso solto” dos personagens adultos é alvo de julgamento em um universo sério e sombrio.
Filme de Angelina Jolie e David Oyelowo vai da imaginação para a realidade
O filme não oferece uma visão de como os autores reais J.M. Barrie e Lewis Carroll criaram os icônicos personagens e seus universos fantásticos, tal como acontece na cinebiografia Em Busca da Terra do Nunca, de Johnny Depp. Ainda assim, o enredo de Alice e Peter: Onde Nascem os Sonhos aposta na comparação entre magia e imaginação de uma forma bastante concisa e surpreendente. É muito bonito ver os “pensamentos” e sonhos das crianças ganhando vida com belos efeitos visuais, ou mesmo rabiscos na mesa ganhando vida de forma lúdica.
Um dos pontos altos é a dicotomia oferecida pela personagem de Angelina Jolie, ora parecendo para as crianças a Rainha Branca de Alice Através do Espelho, ora incisiva como a Rainha de Copas do País das Maravilhas. Fica claro que não há vilões ou mocinhos na vida real. Os universos dos dois contos de fadas se misturam de uma forma inovadora. Ao mesmo tempo, o personagem vivido por David Oyelowo explora os conflitos de um adulto que abre mão da imaginação para enfrentar a dura realidade, cujo refúgio são vícios ao invés de sonhos.
Filme de fantasia é da roteirista de O Rei Leão
A reviravolta pós-tragédia é bem construída e a transição é sutil, mostrando a fuga que os contos de fadas oferecem e como a imaginação se dissolve, ou transforma, conforme se amadurece. Chega a ser cruel e opressivo, mas não é isso o que incomoda. Ao investir em metáforas e referências às obras clássicas, a diretora Brenda Chapman parece querer inserir todos os elementos de uma vez e costura-los em uma colcha de retalhos. Há confusão sobre o que acontece na parte “realista” do roteiro. Personagens como o de Michael Caine (Batman - O Cavaleiro das Trevas), em uma participação especial, por exemplo, não são propriamente apresentados ou explicados.
Trata-se do primeiro live-action da cineasta, que já tem um histórico com contos de fadas, tendo trabalhado nas animações de sucesso O Rei Leão (1994) e Valente (2012). Mas atenção: o filme não é produzido pela Walt Disney Pictures. Apesar da experiência com filmes infantis de fantasia e trazer um toque feminino bem-vindo à produção, Brenda Chapman, ao lado da roteirista Marissa Kate Goodhill (também em seu longa-metragem de estreia), não consegue equilibrar as doses de realismo, fantasia e inúmeras referências e easter-eggs que os clássicos oferecem.
Jordan A. Nash e Keira Chansa são atores revelação de Alice e Peter: Onde Nascem os Sonhos
Grande parte do filme é do ponto de vista das crianças, o que contribui para o entendimento destoante sobre a realidade. Jordan A. Nash (Aladdin, Harlots) e Keira Chansa (Os Irregulares de Baker Street) são atores mirins muito talentosos, bem dirigidos em cena e têm uma boa química entre eles. Revelações dos cinemas, não estranhe vê-los em outras produções em breve.
O elenco ainda conta com a participação de Gugu Mbatha-Raw (A Bela e a Fera), que em breve poderá ser vista na série da Marvel/Disney+, Loki; o jovem Reece Yates (Les Misérables), confortável no papel de David; e Ned Dennehy (Harry Potter e as Relíquias da Morte).
Tal como em contos de fadas e livros infantis, Alice e Peter: Onde Nascem os Sonhos oferece algumas lições de moral, que serão mais entendidas por espectadores adultos do que pelas crianças. Não trata-se de um filme de fantasia propriamente dito, já que não chegamos a adentrar os universos da Terra do Nunca e do País das Maravilhas, o que pode ser decepcionante algumas pessoas. Inspirando tanto sorrisos quanto lágrimas, o longa é sobre a importância da imaginação e sonhos das crianças, e as expectativas que os adultos colocam nos jovens.