Direito de resposta
por Renato HermsdorffUm ícone das artes plásticas, o quadro "A Traição das Imagens" é uma pintura do artista belga René Magritte, associado ao surrealismo, que traz a imagem de um cachimbo acompanhada da legenda: "Isto não é um cachimbo". Trata-se de uma provocação, é claro. A "pegadinha" é que o objeto em questão é um quadro - ainda que uma representação gráfica realista do utensílio usado para fumar - e não "um" cachimbo, em si. E é aí que chegamos em O Formidável, mais novo filme de Michel Hazanavicius (do multipremiado O Artista), sobre Jean-Luc Godard.
Grosso modo, Le Redoutable (no original) conta a história - ou uma parte dela - do icônico cineasta francês. Vai de 1967, quando Godard estava rodando o longa A Chinesa, se apaixona e se casa com a atriz principal do filme, Anne Wiazemsky; aos protestos de maio do ano seguinte, que sacudiram o mundo, e de cujos ideais maoístas o diretor se aproximou justamente quando estava filmando La Chinoise.
Aqui cabe um parêntese. A Chinesa conta a história de um grupo de burgueses liderados por Veronique (Wiazemsky) que se reúne para debater as questões políticas daquela época, com foco na doutrina chinesa, até que se cansam de teorizar e resolvem partir para as ruas. O recorte do filme de Hazanavicius não é ocasional. Nada o é em O Formidável, recheado de camadas simbólico-narrativas.
Baseado na autobiografia escrita por Wiazemsky (acompanhe...), o longa abre a brecha para o que, no jornalismo, se convencionou chamar de "direito de resposta". Para o mundo, o realizador de Acossado é inteligente, original, talentoso, provocador, genial. A partir do relato da convivência do casal, o retrato que a atriz pinta de seu ex-marido é o de alguém arrogante, inseguro, carente, ciumento, possessivo, enfim... um mala. Impossível não se lembrar de Woody Allen e seus alter egos neuróticos. Só que numa versão ainda mais... chata.
Se a dinâmica do casal, na vida real, azedou, por outro lado, ela serve como um banquete para que a parceria entre Louis Garrel (de Os Sonhadores) e Stacy Martin (Ninfomaníaca), na pele dos protagonistas, seja um prato cheio para quem curte cinema. Caracterizado fora do registro de galã (faltam alguns pelos na cobertura do coco de Garrel), ele adota um jeito de falar (traduzido em língua presa) que combina perfeitamente com o tom clown da produção. Já ela, sem muitos recursos ("basta" ser bonita), consegue ser doce ou ácida mexendo um dois músculos da face.
Exibido pela primeira vez no Festival de Cannes, o filme despertou a ira de parte da crítica. Foi como se parte da intelectualidade apontasse o dedo para o francês Hazanavicius: "How dare you?" (em bom português "como você se atreve?") - para usar uma irresistível frase de efeito. Acontece que, para as artes, não deve haver limites. Nem Jesus, nem mesmo Truffaut e Godard estão livres da livre interpretação artística. E a desconstrução do mito não deixa de ser uma ousadia aqui.
Para os fãs dos "fatos reais", estão lá o reconhecimento profissional, algumas alfinetadas no arqui-inimigo (Truffaut), "Bernardo Bertolucci" faz uma participação. Nesta linha (a da "reconstrução", digamos), a opção por colar no "herói" a pecha de "ridículo bancando o revolucionário", no entanto, é questionável. Reforça a tese de que, na condição de burguês e intelectual, o rapaz jamais pudesse atuar de fato a favor do proletariado (sim, estamos falando de "lugar de fala").
Porém, assim como “quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo”, mais do que sobre Godard, O Formidável é sobre o cinema. Através do exercício da metalinguagem, Michel Hazanavicius desnuda (literalmente) questões pertinentes à arte como a narração em off, os diálogos, a justificativa da nudez - numa deliciosa brincadeira. Esse é o "pulo do chat" de Le Redoutable. Porque é aí que se conclui: Isto não é uma cinebiografia. E tudo bem.