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    Por Trás do Céu
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Por Trás do Céu

    O sertão pode ser doce?

    por Bruno Carmelo

    Como cenário emblemático do cinema brasileiro, o sertão nordestino tem sido alvo dos mais complexos questionamentos no que diz respeito à representatividade política e imagética. Há quem exija que o sertão seja uma metáfora política do país, que leve em consideração o ponto de vista dos mais pobres, apesar de ser dirigido por cineastas com mínimos meios necessários para fazer um filme, que não seja embelezado em excesso, mas tampouco enfeado para causar comoção, que fale dos indivíduos, mas trate da sociedade como um todo, que consiga ao mesmo tempo apreender a realidade e transcendê-la.

    As críticas mais severas têm recaído aos filmes que imaginam um sertão doce, mais preocupado com a beleza das imagens do que com a dureza da realidade presente. Abril Despedaçado, O Caminho das Nuvens e Central do Brasil foram atacados em maior ou menor medida por suas imagens multicoloridas, sua abordagem terna de um tema duro. É possível falar da tristeza sem ser triste? Não seria justo trazer beleza, ou apreender a beleza de um local representado majoritariamente de modo áspero pelo jornalismo? A imagem do sertão tem separado os defensores do realismo pouco intervencionista e os fãs de uma espécie de realismo fantástico, sonhado, possível.

    Por Trás do Céu poderia ser considerado como o ápice do lirismo da seca. Para mostrar a vida de quatro personagens sofridos e paupérrimos, o diretor Caio Sóh recorre a uma trilha sonora melancólica, à fotografia saturada, porém não excessivamente estetizante, à direção de arte de teor fantástico, imaginando pessoas vestidas em trapos costurados, e uma ingenuidade extrema – nossos personagens, vejam só, ficam encantados com a sarna de uma mulher da cidade, porque coceira seria algo chique. Os moradores do sertão jamais se coçaram antes?

    A abordagem lírica tem suas vantagens. Alguns diálogos esbanjam beleza, como “Deixa o passado, que é passado, virar passado”, proferido por um personagem no local onde o tempo parece não passar nunca. A máquina de filtrar pensamentos e o foguete caseiro têm seu encanto, seu valor de inventividade e ousadia. O constante maravilhamento é bem orquestrado pela montagem contemplativa, as atuações sólidas do quarteto principal (Nathália Dill, Emílio Orciollo Neto, Renato Góes e Paula Burlamaqui) e a direção capaz de imprimir dinamismo a um cenário único e um horizonte sem fim. A sensação de vazio e de imutabilidade é transmitida com precisão.

    Por outro lado, o radicalismo deste ponto de vista gera uma questionável ode ao primitivismo. O roteiro parece defender o mito dos bons selvagens, nascidos puros e mantidos assim contanto que privados da civilização. Alguns personagens apresentam comportamento ora infantil, ora animalesco, o que gera um humor terno, mas preconceituoso em relação às pessoas sem instrução. É difícil de acreditar que a família capaz de construir uma canoa em tamanho real, no sertão, não tenha ideia de que o mar seja maior que o conteúdo de uma garrafa, é improvável que os sertanejos pronunciem de modo errado absolutamente todos os termos vindos da cidade (“chocolace”, “gravana” etc.), é duro crer que pessoas acostumadas a costurar vestidos belos usariam trapos rasgados como lençol e toalha, é impensável que o trio de sonhadores não tenha o mínimo de malícia para adivinhar a profissão da prostituta. A ignorância é tamanha que combina lirismo com seu inverso indesejado: a chacota, o desdém.

    Outros problemas prejudicam o resultado: o trabalho de som torna incompreensíveis alguns diálogos importantes, como a narração inicial de Aparecida (Nathália Dill) e as falas de Valquíria (Paula Burlamaqui) com seu cafetão. Algumas metáforas são óbvias: quantas vezes veremos um pássaro na gaiola como símbolo de privação de liberdade? Apesar dos poréns, Por Trás do Céu tem o mérito de apostar numa visão incomum de cinema e explorá-la até o fim, sem aliviar a abordagem para agradar a um público mais amplo. Que o resultado comova ou incomode, isso vai depender da tolerância do espectador a tantos recursos emprestados ao realismo fantástico.

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