Nem toda casa é um lar, nem todo jovem é um rebelde sem causa
Casa e lar são coisas diferentes. Nem toda casa é um lar. Mas todo lar depende de algo parecido com uma casa: um endereço, um local físico feito de tijolos e cimento. Um lar exige vida. A passagem dos dias em um mesmo espaço com as mesmas pessoas. A convivência. O sentimento de segurança que nasce da previsibilidade. Lar é acima de tudo segurança. Um lugar de proteção. Se há uma casa e uma família vivendo nela, há um lar ? Não. É o que podemos ver no quarto longa metragem da diretora belga Fien Troch lançado em 2016. O filme chama-se LAR; uma ironia, já que fala da inexistência dele.
O enredo é esse. Kevin, um jovem de cerca de dezessete anos, acaba de sair de uma prisão juvenil. O garoto passa a morar com os tios, por decisão da mãe que tenta afastá-lo de companhias ruins além de evitar bigas entre ele e o pai. O novo lar não livra o rapaz de confusões.
LAR é um filme sobre jovens; ou melhor, sobre a juventude. O cinema assim como outras produções culturais são vistos, hoje, para além do seu valor interno; a qualidade intrínseca a sua forma e ao seu conteúdo calculada pela atuação dos atores e pela fotografia, por exemplo. Analisar a recepção da obra, seus impactos sociais, é tão importante quanto fazer juízo dos seus valores internos. Ao conceder protagonismo à juventude, o filme de Troch atinge o público. Ele questiona. Provoca reflexões. É difícil sair imune ao seu encontro.
Filmes como “Rebel Without a Cause” (Juventude transviada) tiveram importante papel ao retratar a desilusão da juventude com o mundo. Mas não foi o bastante. Sem querer apontar culpados; é necessário dizer que a rebeldia emulada por James Dean e reproduzida por tantos filmes inspirados na curta filmografia do ator americano muitas vezes foi interpretada como um estado transitório. A rebeldia juvenil seria apenas uma fatuidade, uma espécie de histeria transitória, sem causa. Se o descontentamento e a rebeldia que ele provoca são uma crise passageira, não há motivo para a sua compreensão. Tudo não passa de uma fase.
Troch não aceita essa posição confortável. Para ela essa rebeldia tem causa. Talvez, a mais importante seja a falta de comunicação. O filme tem muitos silêncios. Quando há diálogos, eles quase sempre são inócuos. Perguntas sem respostas. Respostas vazias. Não há compreensão de parte alguma. Troch aponta algumas razões disso: as ocupações cotidianas que reduzem os diálogos, o menosprezo dos problemas da juventude e a arrogância dos adultos ao se considerarem donos da verdade. Os jovens não tem voz. Ou melhor, ficam mudos por não serem ouvidos. Se não há voz, não há compreensão. Há uma cena exemplar a esse respeito: os tios entusiasmados compram uma televisão para Kevin, aparelho moderno com dezenas de canais; tem certeza que se trata do presente perfeito; estão enganados, mal saem do quarto do garoto após instalarem a televisão, ele a desliga.
LAR não é um filme que pretende dar respostas. Pelo contrário. Ele valoriza a dúvida. Tira o peso do erro pois deixa claro a impossibilidade do estabelecimento de certezas ou fórmulas de existência. Na vida tudo é precário. Kevin e seus amigos estão confusos, perdidos. Sua busca, entretanto, é sempre frustrada. É um caminho que nunca se inicia ou que não se desenvolve. Troch renova o olhar sobre a juventude. Se há confusão, também existe a procura de um trajeto. Se estão perdidos, também é porque não tem voz.
Por certo, Brasil e Bélgica são países distintos. Os problemas e as dificuldades dos jovens de cada país não são iguais. Diante disso, a dúvida da relevância de um filme belga para o público brasileiro é pertinente. Essa dúvida, entretanto, acaba para aqueles que assistirem o longa. Apesar das diferenças sócio-econômicas evidentes; jovens são jovens em qualquer lugar do mundo. Compartilham, portanto, das adversidades inerentes a sua condição.
A representação da juventude proposta por Troch, pretende transgredir a própria imagem socialmente produzida dos jovens. Na verdade, a diretora ressalta a precariedade dessa imagem. Imagem precária feito um retrato superficial. Assim como uma casa habitada por pai, mãe um cachorro e um casal de filhos é um retrato superficial de um lar.