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    A Casa do Medo - Incidente em Ghostland
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    A Casa do Medo - Incidente em Ghostland

    Sadismo em xeque

    por João Vítor Figueira

    Reza a lenda que há 10 anos, quando Mártires foi exibido no Festival de Cannes como um excitante representante do chamado New French Extremism, houve choro e ranger de dentes. O longa-metragem intensamente violento de aspirações sócio-filosóficas do diretor Pascal Laugier teria sido recebido com desmaios, vômitos, lágrimas e debandadas da sala em sua primeira projeção. O espectro daquela sessão ronda Laugier até hoje e sempre que um novo trabalho do cineasta é anunciado os fãs de terror que acompanham seu trabalho se questionam: será que o realizador segue firme em sua tentativa de embrulhar estômagos mundo afora?

    A Casa do Medo - Incidente em Ghostland chega aos cinemas uma década depois de Mártires, que representou um tipo de contraponto conceitual a filmes como Jogos Mortais e O Albergue, por, nas palavras de Laugier, usar a dor como meio, não como fim. O recente trabalho do cineasta, entretanto, parece jogar de acordo com as regras do jogo do cinema de terror de forma ambivalente. O filme, por vezes, se apresenta como um comentário sobre a própria natureza sádica e espetacularizante do gênero cinematográfico do qual faz parte ao mesmo tempo em que parece não saber medir bem a linha entre a auto-sátira e o clichê. Ainda assim, mesmo que o projeto não seja tão impactante quanto a maior obra do diretor francês, o cineasta ainda sabe como incomodar — e fazer refletir com seus subtextos.

    A trama começa como tantas outras tramas de filmes de terror: uma família se muda para uma casa remota repleta de objetos macabros/bizarros onde se torna alvo de psicopatas. Mylène Farmer, diva pop francesa de décadas passadas, vive Pauline, mãe solo das adolescentes Beth e Vera, que inicialmente têm suas diferenças, naturais entre irmãs da mesma idade, mas têm os laços reafirmados no meio das atrocidades que vivenciam. Beth, interpretada em sua fase jovem por Emilia Jones e como adulta por Crystal Reed, é uma entusiasta da literatura de fantasia e terror do escritor Howard Phillips Lovecraft e por vezes se perde em seus devaneios. Vera, interpretada por Taylor Hickson quando jovem e por Anastasia Phillips em sua espinhosa fase adulta, é dona de uma personalidade mais extrovertida.

    A Casa do Medo - Incidente em Ghostland tem como vilões, duas figuras rasas e grotescas. Por um lado, isso prejudica a complexidade do enredo. Ao contrário do que acontece em Mártires, por exemplo, nada se sabe sobre o que motiva aquelas atrocidades e o que uniu psicopatas de perfis aparentemente tão distintos a agirem juntos. Por outro lado, a escolha de Laugier — também roteirista — de apresentar a dupla de antagonistas como meros arquétipos (uma espécie de ogro e uma espécie de bruxa) faz com que o olhar do espectador se concentre nas vítimas.

    É comum que filmes de terror tragam um background trágico para a jornada de seus monstros. Leatherface (referenciado em A Casa do Medo na figura do "ogro") é fruto de uma família de sociopatas que certamente influenciou em sua postura perversa. Até mesmo Freddy Krueger e Jason Voorhees têm histórias traumáticas no passado. O que acontece neste longa-metragem, entretanto, é que há a chance de pensar em como as protagonistas, especialmente a personagem Beth, processam o trauma de experimentar uma violência tão brutal enquanto ela acontece. Há aí um interessante ponto sobre os próprios filmes de terror.

    Como não poderia deixar de ser, a guinada de violência que o filme tem é mesmo intensa, radical e desumana. A ambiguidade com a qual o filme lida com sua própria metalinguagem dá margem para que se pense a crueldade como um escape vazio em si mesmo. Entretanto, o que Laugier propõe é uma reflexão, ainda que vacilante, sobre o sadismo enquanto entretenimento. A existência da pavorosa casa que se torna palco para onde a mãe leva suas filhas e a presença de vilões que mais parecem uma lenda urbana faz tão pouco sentido dentro do universo de verossimilhança do filme que nos é permitido pensar que muito em A Casa do Medo é um trabalho de auto-sátira.

    Os clichês do terror, como as luzes que piscam antes de uma situação de tensão e a presença de bonecas tétricas usadas como elementos de ambientação na casa que é cenário de tanta violência, estão presentes de maneira intencional. O que o longa-metragem questiona, quase como um argumentum ad nauseam, é a perversidade por trás de filmes no qual o único fim é fazer mulheres, geralmente jovens, sofrerem. Em muitos longas-metragens do gênero, especialmente os do subgênero slasher, ao qual A Casa do Medo faz referência, personagens são trucidadas com uma latente misoginia, especialmente quando as personagens são sexualmente ativas. O medo da sexualidade feminina e as tentativas dos vilões de enquadrar as flageladas adolescentes em estereótipos de feminilidade arcaicos são maneiras claras do filme de denunciar, através do choque, não apenas o sexismo repetidos em filmes de terror, mas na sociedade.

    Há uma cena icônica e angustiante na qual Beth aparenta um pavor crível ao ser submetida a uma sessão de maquiagem forçada. Os close-ups sufocantes de Laugier conferem ao momento uma claustrofobia mortal que iguala (simbolicamente, é claro) aquele momento às outras violências que as garotas sofrem nas mãos dos algozes. Ao som de uma valsa, a lágrima da menina se mistura com o blush, o que parece ser do interesse dos vilões desde o início: impor um comportamento, um padrão estético impossível e uma atitude de total passividade por parte delas. Uma importante semelhança entre A Casa do Medo e Mártires é o tema da cumplicidade feminina em momentos de crise e desesperança.

    Apesar das ideias, a direção de Laugier para este projeto é apenas convencional e por vezes faz escolhas duvidosas, como a nudez desnecessária (uma das contradições deste projeto) e uma sequência de comicidade involuntária envolvendo uma das bonecas macabras da casa. A atuação de Emilia Jones como a jovem Beth é a que mais se destaca, uma vez que a personagem é mais exigida ao longo do filme. Entretanto, as demais atuações são mais genéricas em suas hipérboles, especialmente o registro de Reed como a versão adulta de Beth. Um outro problema do filme são os diálogos rasos. Por mais que haja o flerte com a metalinguagem, as falas poderiam ser mais contundentes e não se limitar à mera funcionalidade ou redundância.

    O realismo do trabalho de maquiagem coordenado por Brenda Magalas mostra incômodos rostos deformados das protagonistas como se quisesse confrontar o espectador com os contrassensos dos filmes classificados como torture porn. É claro que determinados públicos podem interpretar este projeto como mais um filme gore descerebrado, mas são os subtextos deste longa-metragem que garantem as reflexões mais profundas.

    Com algumas viradas surpreendentes, A Casa do Medo - Incidente em Ghostland revisita traumas desesperadores em um filme que, mesmo com tanta violência e maldade, é mais sobre a força de suas protagonistas do que sobre a brutalidade que elas sofrem.

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