O milagre da vida
por Francisco RussoFalecido em 2017, o cineasta iraniano Abbas Kiarostami ainda deixou no currículo um filme inédito, altamente conceitual, no qual trabalhou por anos. O resultado é o póstumo 24 Frames, através do qual, mesmo dentro de suas características, é possível notar o apreço do diretor pelo milagre da vida.
Elaborado de forma a dar novo significado a 24 fotos e pinturas, Kiarostami parte de imagens pré-estabelecidas para, com muita sutileza, trazer vida tendo por base a própria natureza. A proposta funciona assim: a imagem estática surge em cena e, aos poucos, detalhes ganham movimento de forma a trazer uma narrativa própria, dentro da ambientação da própria imagem. A duração gira em torno de cinco minutos cada frame, com a utilização de técnicas como sobreposição de imagens e até mesmo animação. Ou seja, trata-se de um exercício de linguagem cinematográfica altamente criativo e artesanal, no estilo que o diretor tanto apreciava.
É claro, um filme neste estilo tem como traço principal a irregularidade. Se alguns frames soam banais, meros cartões-postais animados, há outros de uma beleza imensa. Como o segundo frame, onde dois cavalos aparentam dançar tango, ou o balançar de uma árvore ao som de uma melodia, como se a estivesse dançando (frame 6). Da mesma forma, há o simples fascínio da contemplação da vida acontecendo diante de si, como no frame envolvendo um gato e um pássaro (15º) ou no lindo trabalho que retrata a variação de luminosidade em decorrência da passagem de nuvens, tendo como foco um pombo atrás de um toldo (12º). Pouco a pouco, estabelece-se um jogo com o espectador de forma a vislumbrar o que está por vir - o que, por vezes, surpreende pela simplicidade do inusitado.
De fundo poético e reflexivo, 24 Frames é resultado de um trabalho dedicado aos detalhes, de forma a transmitir muito através das pequenas variações ou representações exibidas. É a partir do inusitado e da sutileza das mudanças que o diretor busca acompanhar traços da natureza e, em alguns casos, estabelecê-los com a cultura produzida pelo homem. Trata-se de um filme experimental bastante criativo, mais próximo até ao de um artista plástico com o audiovisual que o de um cineasta, o que também exige que o espectador embarque em tal proposta, estética e narrativa, para que possa apreciá-lo.
Filme visto no 70º Festival de Cannes, em maio de 2017.