A tragédia da classe média
por Bruno CarmeloNo início, é fácil ter simpatia por Berenice Procura. O diretor Allan Fiterman explora bem os espaços da cidade do Rio de Janeiro e de um apartamento de classe média, enquanto Cláudia Abreu revela desenvoltura no papel de uma mãe que abandonou a vida de dona de casa para ser taxista. A representação LGBT é igualmente louvável, com personagens importantes atribuídas a Brigitte de Búzios e Valentina Sampaio, além de uma subtrama relevante de descoberta da sexualidade.
Mesmo com um elenco composto de grandes nomes da televisão (Eduardo Moscovis, Vera Holtz, Emílio Dantas), o projeto adquire um tom muito mais amargo do que a teledramaturgia está acostumada a mostrar – vide as cenas brutais de estupro conjugal, masturbação feminina, agressão e nudez frontal de uma travesti. Nestes casos, o diretor aposta em sequências sem cortes, para imprimir um tom de realidade ainda maior. As ambições cinematográficas e sociais do filme são profundas, condizentes com a importância do tema.
Por estas razões, é uma pena que o projeto se enfraqueça devido às escolhas de direção e roteiro. No que diz respeito à estética, Fiterman abusa de imagens distorcidas, desfocadas, refletidas, sobrepostas, com muitos flares e outros enfeites. As apresentações no clube de travestis possuem cor e estilo por si próprias, mas tantos acréscimos na composição prejudicam a apreciação da intriga e das atuações. A cena de sexo dentro de um carro, por exemplo, traz tanta fragmentação da montagem e acúmulo de artifícios que perde qualquer forma de erotismo.
O roteiro investe numa transformação rápida demais do drama ao suspense policial. Berenice torna-se investigadora do dia para a noite, encontrando indícios e desvendando pistas com uma facilidade improvável. A opção de fazer com que os três membros da família (mãe, pai e filho) estejam diretamente ligados ao assassinato da travesti em Copacabana também torna o mecanismo artificial. Isso sem falar em uma série de opções questionáveis, como a vilã caricatural de Vera Holtz, o romance abrupto e mal desenvolvido de Berenice, a figura de um irmão que parece não sofrer com a morte da irmã querida e um subaproveitado Jayme (Fábio Herford).
Como representação da comunidade LGBT, Berenice Procura revela um avanço notável em relação a algumas ficções nacionais bem-intencionadas, porém equivocadas, como O Casamento de Gorete, Como Esquecer e A Glória e a Graça. Os retratos da orientação sexual e identidade de gênero concebidos por Fiterman são sensíveis e naturalistas, com direito a uma subtrama tipicamente rodriguiana visando desconstruir a imagem da “tradicional família brasileira”, isto é, patriarcal e opressiva. Infelizmente, a trama rocambolesca e inverossímil compromete o humanismo do filme.
Filme visto na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2017.