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    Como Fotografei os Yanomami
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Como Fotografei os Yanomami

    O feitiço das imagens

    por Bruno Carmelo

    Em “Ontologia da Imagem Fotográfica”, o crítico e teórico André Bazin resgata uma das funções ancestrais das artes plásticas: a sua vocação a representar a realidade, preservá-la para a posteridade, análoga à mumificação ou conservação em âmbar. “Assim se revela, a partir das suas origens religiosas, a função primordial da estatuária: salvar o ser pela aparência”. Desta maneira, a imagem constituiria mais do que uma forma de documento e preservação, mas também um prolongamento simbólico da vida, uma maneira de driblar a morte. Seria um privilégio: afinal, as estátuas e quadros retratam especialmente pessoas nobres e notórias de suas épocas.

    No entanto, a fotografia transformaria profundamente esta relação com o real, ainda de acordo com Bazin: “A originalidade da fotografia em relação à pintura reside, pois, na sua objetividade essencial. Tanto é que o conjunto de lentes que constitui o olho fotográfico em substituição ao olho humano denomina-se precisamente ‘objetiva’. Pela primeira vez, entre o objeto inicial e a sua representação nada se interpõe, a não ser um outro objeto. Pela primeira vez, uma imagem do mundo exterior se forma, automaticamente, sem a intervenção criadora do homem, segundo um rigoroso determinismo”. O filósofo do cinema François Niney diferencia a ficção do documentário com um raciocínio análogo: “Na ficção, a realidade é colocada entre parênteses”, o que não seria o caso do documentário. O que determina o valor e a função da arte seria a sua relação com o real.

    Essas divagações ajudam a interpretar o complexo Como Fotografei os Yanomami, documentário dirigido por Otavio Cury. À primeira vista, parece ser um registro da existência de comunidades indígenas. Antes disso, trata-se de um documentário sobre a função representativa da imagem. E antes de tudo isso, um estudo de linguagem, como se percebe pela precisão do título. “Como fotografei os Yanomami” indica pela escolha do “como” a investigação de um procedimento, ao invés dos fatos; privilegia o verbo “fotografar” ao invés de “filmar”, “gravar” – pois é da ontologia fotográfica de que estamos falando -, escolhe um verbo na voz ativa, deixando os índios em função passiva, e opta pelo passado do verbo, assumindo-se como reflexão pós-fato. A fotografia já aconteceu: agora é hora de refletir sobre o modo como ela aconteceu, e sobre o que significou. O filme parece nascer depois que as imagens foram captadas.

    Para os Yanomami, a fotografia – e por extensão, o cinema – não é uma coisa boa. Estes índios do norte do Brasil acreditam que algo de sua essência é roubado através do aparelho. Quando alguém morre, a existência da foto indicaria que ela não se foi por completo, que não conseguiu descansar em paz, porque parte de si permanece intacta no mundo dos vivos. Seguindo este raciocínio, você se torna menos você a cada vez que alguém o “apreende” em imagens. Trata-se de uma função igualmente mágica, assim como a mumificação citada por Bazin: passamos da representação do real à interferência direta na realidade. O mundo deixa de ser o mesmo a partir do instante que você o eterniza. Esta visão grave e poética do registro imagético constitui ao mesmo tempo a maior descoberta e a principal limitação deste documentário: como filmar quem não pode ser filmado?

    A primeira solução encontrada consiste em usar frases dos índios transcritas em letreiros na tela, sobrepostos a cenas da natureza. As frases discorrem sobre a relação entre a medicina indígena e a medicina dos brancos, sobre os rituais de vida ou morte. Os índios, neste caso, não ganham corpo nem voz, mas sua cultura é preservada, enquanto a imagem representa o local onde vivem – as florestas em planos aéreos. A segunda solução, mais problemática, consiste em pedir a enfermeiros e assistentes brancos, que frequentaram os Yanomami durante anos, para descreverem os seus rituais, seus gostos, suas práticas diárias. Presenciamos então homens brancos reproduzindo gritos indígenas, enfermeiras repetindo os gestos dos xamãs para expulsar as doenças dos corpos.

    O procedimento incomoda por retirar dos índios o seu protagonismo, atribuindo a tarefa de representá-los àqueles que historicamente os suprimiram. Poderia se falar, utilizando um raciocínio contemporâneo, em whitesplaning. Não seria melhor uma representação pela ausência? Deixar a câmera com os índios, como fez Serras da Desordem? Explorar mais a figura do Yanomami que fala português e frequenta a cidade grande, mostrando-se disposto a explicar as práticas de seu povo? Ao menos, estas cenas belamente filmadas e minuciosamente enquadradas – a valorização dos objetos e cômodos das casas é preciosa – funciona para transmitir o estranhamento da dupla representação, ou duplo decalque do real, se pensarmos em termos platônicos: a imagem representa um branco que representa um índio. A cada nova camada, perde-se mais o contato com o real, como numa versão imagética da brincadeira de “telefone sem fio”, na qual a mensagem final é progressivamente distorcida à medida que se acrescenta mais pessoas e obstáculos à transmissão da mesma.

    Rumo ao final, Como Fotografei os Yanomami resgata a imagem de um índio real efetuando uma dança ritualística, registrada por outro índio – como é diferente esta dança in loco em comparação com aquela imitação no quintal de casa! Além disso, reforça a presença de televisões nas casas, dos smartphones nas mãos de alguns jovens. “Não podia fotografar, mas quando eu aparecia com um pacote de bolachas, eles deixavam”, afirma uma assistente branca, com certa curiosidade. “Acho que a fome era maior”, conclui. Aos poucos, o documentário explora uma crise na representação, o confronto da arte com a realidade, a permeabilidade inevitável entre a tradição indígena e a tecnologia contemporânea dos brancos.

    “Registra isso, registra isso! Quem vai filmar?”, alguém grita durante a inauguração de um hospital indígena na região. Vários telefones celulares se voluntariam para cumprir esta função. Ao longo de uma única narrativa, a imagem perpassa valores diferentes: ela começa como veículo de preservação e documento (as cenas de pegadas na terra, de cunho antropológico), passam a adquirir um valor mágico (o “roubo” da essência humana pela interpretação Yanomami) e termina como veículo de descartabilidade, excesso, individualidade e espetáculo, típicos das fotografias em tempo de digitalização e redes sociais.

    Talvez a estrutura do projeto seja um pouco dispersa: o diretor oscila entre se incluir nas imagens ou não, entre usar o depoimento dos brancos de modo complementar ou crítico, entre retratar a política governamental em relação aos índios ou ocultá-la. O surgimento do hospital aparece sem real ponto de vista, a execução do hino nacional pode soar irônica, mas não tem tempo de desenvolver tal ponto de vista. Como Fotografei os Yanomami combina um turbilhão de ideias e registros, com sua câmera excessivamente tremida na busca de captar algo precioso, com urgência, para então acrescentar depoimentos, e incluir valiosos materiais de arquivo no terço final... A voracidade por retratar tantas ideias constitui sua saudável ambição, mas também o limite à sua coesão. Por fim, funciona melhor como questionamento da natureza das imagens do que como retrato dos índios e de sua cultura.

    Filme visto no 13º Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, em julho de 2018.

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