Sinhazinha
por Taiani MendesUma senhora de engenho volta às suas terras para impedir que a área seja tomada por antigos trabalhadores do canavial, responsáveis por uma bem-sucedida plantação de flores e apoiados por financiadores estrangeiros. Uma trama simples e ao mesmo tempo complicada que em Açúcar, filme de Renata Pinheiro (Amor, Plástico e Barulho) e Sérgio Oliveira (Estradeiros), é contada pelo segundo ângulo. A sequência inicial com o barco “Sou Feliz” navegando pela vegetação da zona da mata pernambucana anuncia logo de cara que o simbólico se fará bastante presente e assim o é (até em excesso) neste drama que escancara profundos ferimentos ainda bem recentes na miscigenada pele da sociedade brasileira. Muitos se reconhecerão e serão reconhecidos na tela, o que é terrível.
Maria Bethânia Wanderley (Maeve Jinkings, que merece mais personagens principais), a execrável protagonista descolada da realidade, desembarca nas terras de sua família com mala de rodinhas, cabelo alisado, salto alto e zero disposição para negociar com Zé (José Maria Alves), líder do grupo de antigos trabalhadores que tomou posse de parte do terreno. Isolada na casa grande estabelecida no alto, ela se considera realmente superior aos vizinhos que observa à distância, sempre de cima, numa mistura de temor, desprezo e atração. A tensão é potencializada com a entrada de Alessandra (Dandara de Morais) na residência de Bethânia. Atuando como faxineira para vigiar a inimiga, a jovem faz a personagem principal colocar para fora todo seu racismo e instabilidade emocional.
Bethânia representa os brasileiros que não aceitam o fim da escravidão, acreditam que não fizeram nada de mal à população negra e conectam imediatamente o corpo negro ao sexo. Branca (Magali Biff), a madrinha vinda do Sudeste que ela idolatra, tem as mesmas opiniões, mas sabe guardá-las para o público certo e reconhece a mudança de ventos, ainda que não a aprove. Sua visita à antiga senzala gravando vídeos e simulando lamento é ridícula e dolorosamente verossímil. É a classe média que faz média com todos e vai onde o dinheiro está, lamentando a situação em que o país chegou. Uma figura de nosso tempo, ao passo que Bethânia, radical, ficou no passado, sem energia elétrica, aparelhos eletrônicos ou novas ideias além do quimérico plano de cultivar um milenar e controverso fruto oriental.
O despertar de Bethânia para o hoje e para suas próprias origens se dá de forma não muito convincente pela espiritualidade. Ela, que tem nome de santa e se considera realmente uma frente à promiscuidade ofensivamente imposta à mulher negra, é intensamente abalada por manifestações culturais e religiosas afro-brasileiras. Faz sentido, mas a maneira como o sobrenatural e o fantástico são apresentados na trama é um tanto quanto difusa, como um flerte desengonçado que jamais avança.
Cenas como a da disputa de Branca e Zé pela iluminação e principalmente a masturbação de Bethânia usando a terra - que “é ela”, é e não é dela, é escura - são perfeitas na conjugação de impacto visual e riqueza de significados, mas outras tantas parecem soltas, composições até interessantes, mas sem importância narrativa identificável. Açúcar parece um filho caçula do Cinema Novo em sua dedicação ao denso tema social e esforço na obstrução à fácil compreensão.
O TRECHO A SEGUIR CONTÉM REVELAÇÕES SOBRE A ÚLTIMA CENA DO FILME
O maior problema do longa-metragem, no entanto, encontra-se na ambígua conclusão. Uma Bethânia, mesmo que finalmente consciente de sua raça, permanecer na área do Engenho Wanderley ao final indica que não ocorreu a derrota completa necessária. Ela tendo direito de ainda se considerar dona da terra ou a própria terra por ter cabelo crespo é como uma pessoa branca e rica se inscrevendo no sistema de cotas no vestibular por ser bisneta de um negro. Maria Bethânia perde ganhando, o que pode ser ótimo para ela, mas é péssimo para quem a viu como adversária a ser combatida – os personagens ligados ao Centro Cultural Cabo Verde e o público. O tom anárquico de sequências anteriores é totalmente anulado, causando amargor. O pior é que talvez o significado sequer seja esse que visualizei, mas só de dar abertura para tal interpretação já é sinal de que não se trata de um encerramento realmente feliz ou condizente.
Filme visto no 19º Festival do Rio, em outubro de 2017.