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    Mudbound - Lágrimas Sobre o Mississippi
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Mudbound - Lágrimas Sobre o Mississippi

    Morte e vida no campo

    por Bruno Carmelo

    Se alguém perguntar “Do que trata este filme?”, como se ouve de vez em quando, a resposta não será fácil de determinar. Mudbound - Lágrimas Sobre o Mississippi aborda uma dezena de temas importantíssimos, incluindo a luta de classes, o racismo no sul dos Estados Unidos, a posição de inferioridade da mulher na família tradicional, os traumas da guerra, a violência do capital, a ascensão de seitas organizadas como o Ku Klux Klan, o nacionalismo imperialista norte-americano, as diferenças de valores entre o campo e a cidade etc.

    Não existe um protagonista, e sim meia dúzia de personagens igualmente importantes, cada um ganhando suas cenas, seu diálogo interior, seu ponto de vista. A história apresenta uma sucessão de episódios cotidianos de injustiça, interpretados como algo comum e inevitável. “A violência faz parte da vida no campo”, reflete Laura McAllan (Carey Mulligan) ao associar a naturalidade da morte e a artificialidade das relações de poder. Mas nas zonas rurais de antigamente, nas famílias ricas com seus criados, matava-se negros como se matava gado. Nas altas classes, isso não escandalizava ninguém. Estava na ordem das coisas.

    Talvez o principal mérito deste drama seja efetuar uma crônica do “estado das coisas”, justamente. O roteiro busca abarcar o máximo de personagens e temas possíveis para construir um mosaico da moral e dos costumes de uma época, colocados em evidente paralelo com os dias de hoje. Atualmente, negros não sentam em bancos separados dos brancos nos ônibus, mas estrangeiros são vistos como ameaças inerentes, e separados por muros artificiais. Não é mais absurdo uma mulher adulta permanecer solteira - não na maioria dos países ocidentais, pelo menos, mas ainda é visto com suspeita que ela ocupe cargos de chefia.

    A trama não deseja conduzir o leitor rumo a uma jornada específica. Não existe um aprendizado único, e sim uma reflexão ampla sobre o mecanismo social que engloba tantas “histórias reais” representadas no cinema. A narrativa poderia durar uma hora a menos, ou duas horas a mais. Tanto faz: este é um recorte do cotidiano, e se a história retratasse outros personagens por volta da mesma época, encontraria episódios semelhantes. A diretora Dee Rees trabalha com os traços de uma história exemplar.

    A profunda ambição sociológica resulta em uma série de qualidades notáveis, mas também defeitos evidentes. Por um lado, a amplitude da trama permite brincar com o tempo (a circularidade da primeira e da última cena) e o espaço (a articulação excelente da montagem sonora e imagética entre as cenas no campo e as cenas na guerra). Rees revela-se uma talentosa criadora de ambientações, sublinhando muito bem o aspecto lamacento que dá nome ao título original, além de explorar a fotografia belíssima de Rachel Morrison – rica em detalhes, mas não idealizada – e a trilha sonora discreta, pouco convencional, de Tamar-kali Brown.

    Somadas às delicadas narrações literárias de cada personagem, Mudbound atinge um lirismo singular. Este tom afetuoso encontra paralelo no desempenho do elenco: a cineasta consegue atenuar a dramaticidade excessiva de Carey Mulligan e intensificar a expressividade contida de Garrett Hedlund. Com os atores negros, em especial, evita o maniqueísmo a todo custo. Ao invés de criar mártires e sobreviventes, extrai de Jason MitchellMary J. Blige e do excepcional Rob Morgan um misto de revolta e imobilidade, tornando-os mais complexos psicologicamente do que seus algozes.

    Por outro lado, os episódios são tantos, os temas se acumulam de tal forma que a montagem demonstra dificuldade em abordá-los ao mesmo tempo. Jamie (Garrett Hedlund) desaparece durante boa parte da trama antes de retornar, e depois, é a vez de Henry (Jason Clarke) sumir. Durante o forte segmento dedicado aos traumas da guerra, o roteiro para de investir no peso da religião. Na parte consagrada ao Ku Klux Klan, é o retrato feminino que se deixa de lado. É impossível equilibrar tantas bolas no ar.

    Ao mesmo tempo, Mudbound poderia despertar críticas semelhantes àquelas destinadas ao brasileiro Vazante. A produção americana também aborda racismo através de um painel variado de personagens, metade brancos e metade negros, buscando “entender o lado de cada um”. Esta aparente imparcialidade diante de uma situação de opressão pode ser interpretada como conformismo, uma das principais críticas lançadas ao filme de Daniela Thomas. Filmes políticos possuem a obrigação moral e artística esclarecer sua visão de mundo? A constatação de uma realidade constitui mérito em si, ou precisa ser acompanhada de uma reflexão dialética?

    O resultado parece inchado de intenções e discursos. Embora o melodrama não apele à chantagem emocional, ele se faz presente da primeira à última cena. Esta é, de fato, uma história de violências, no plural. Violência contra a mulher, contra os negros, contra os pobres, contra os estrangeiros, contra o Estado de direito, contra a justiça. Seria ingênuo colocar todas estas lutas num mesmo patamar – cada uma possui as suas especificidades. Mudbound ostenta seu comovente humanismo sem abraçar, de fato, nenhuma dessas batalhas. Ele observa muito bem, mas permanece no plano das ideias. Para se tornar um cinema político, no sentido estrito do termo, precisaria agir naquela realidade, deslocá-la, transformá-la, reestruturá-la, representá-la. Buscar metáforas, ícones, símbolos. Dar um passo além.

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