De um modo geral, uma fábula é definida como uma pequena narrativa em prosa ou verso em que se aproveita a ficção alegórica para transmitir uma verdade ou a reflexão de uma moral em que há a participação de pessoas e animais (e, algumas vezes, de seres inanimados). Os puristas podem até não concordar, mas esta é um definição que encaixa-se muito bem no filme Um Gato de Rua Chamado Bob.
James Bowen (Luke Treadaway, de Ataque ao Prédio) é um músico desempregado e sem-teto que vive nas ruas de Londres, ganha uns poucos trocados tocando seu violão, é viciado em drogas e seu pai (Anthony Head, de Motoqueiro Fantasma: Espírito de Vingança), madrasta (Beth Goddard, de X-Men: Primeira Classe) e o restante de sua família não querem saber dele. Após sobreviver a uma overdose, decide entrar para valer no programa de desintoxicação com a ajuda da assistente social, Val (Joanne Froggatt, da série de TV Downton Abbey).
Val consegue arrumar um pequeno flat em um bairro pobre para James morar. Lá conhece Betty (Ruta Gedmintas, da série The Strain: Noite Absoluta), uma jovem que ganha a vida levando cães para passear e que ama animais. Em sua primeira noite no flat, durante o banho, James ouve um barulho e pensa que um ladrão entrou na residência. Assustado, vai até a cozinha e lá descobre o responsável pelo barulho: um gato cor de laranja que estava comendo seus cereais.
James tenta em vão achar o dono do gato, repara que o animal está ferido e pede ajuda à Betty. Esta lhe dá o endereço de uma clínica veterinária que presta atendimento gratuito e chama o gato de Bob. James passa a tomar conta de Bob e a levá-lo consigo para o trabalho e o bichano chama a atenção dos passantes.
Se há uma coisa em comum entre os chamados países "de primeiro mundo" e os "emergentes" é o aumento assustador e crescente de moradores de rua, também conhecidos como "sem-tetos" ("homeless", é o termo equivalente em inglês), nestes últimos anos.
Apesar de toda a propaganda na mídia apregoando os "benefícios" do chamado "sistema de livre iniciativa" do atual momento neoliberalista pelo qual o mundo - e o Brasil em particular - passa, a verdade é que a exclusão social está cada vez maior. Inclusive nos EUA (que os coxinhas vivem usando como exemplo para seus ideais), a Meca do neoliberalismo, nunca, nem mesmo no período da Grande Depressão Econômica (1929-1939), houve tantas pessoas vivendo nas ruas como nos dias de hoje.
Em 2015, no Festival de Karoly Vary, na República Tcheca, o ator estadunidense Richard Gere (Chicago), em uma entrevista coletiva de lançamento do filme O Encontro, no qual fez o papel de um sem-teto, contou um episódio de filmagem:
“Estava na esquina de uma rua com um chapéu na cabeça. Estava um pouco nervoso porque ninguém olhava para mim. Bebi um café e comecei a pedir dinheiro, a perguntar se as pessoas podiam me ajudar. Filmamos durante 45 minutos com uma câmera digital. Durante 45 minutos ninguém olhou para mim e ninguém tentou estabelecer contato visual. Ganhei dois dólares e meio”.
Há uma frase de George, personagem de Gere no filme, que resume perfeitamente essa triste situação:
"Eu sou um sem-teto. Eu não existo!".
Um Gato de Rua Chamado Bob, também mostra essa situação, de sem-tetos de expressões tristes, pedindo dinheiro, dormindo na rua e catando comida no lixo para saciar a fome. Todos ignorados pelas pessoas que passam ou tratados como uma lesma na barba que causa incômodo tal qual na cena em que James é enxotado da frente de uma estação de metrô embora não estivesse bloqueando a entrada nem perturbando ninguém. Apenas tocava seu violão.
O cineasta canadense naturalizado britânico Roger Spottiswoode (História de Um Massacre), utilizando-se de sua larga experiência em variados gêneros de filmes no cinema e na TV e com uma direção correta e segura, deu a Um Gato de Rua Chamado Bob, o tom de fábula moderna que, conforme escrito no início do texto, encaixa-se com perfeição na história autobiográfica do best seller homônimo no qual o filme foi baseado.
Se a direção de Spottiswoode dá o tom de fábula à película, a fotografia do canadense Peter Wunstorf (O Segredo de Brokeback Mountain), dá o clima. Londres, cidade conhecida pelo fog (neblina) e por sua aparência cinzenta (no que se assemelha a metrópole brasileira São Paulo), poucas vezes apareceu de modo tão bonito, com cores tão vivas e com um leve toque de magia quanto em Um Gato de Rua Chamado Bob, mesmo em cenas de chuva ou de dia nublado.
O compositor australiano David Hirschfelder (A Lenda dos Guardiões) é um velho colaborador de Roger Spottiswoode - é o quarto filme no qual trabalham juntos. Mas, ao que parece, desta vez não estava muito inspirado, pois a trilha sonora do filme não é daquelas memoráveis.
Em contrapartida, as canções acústicas do cantor e músico Charlie Fink - ex-membro da banda Noah and The Whale e queridinho do Indie Rock (Rock Independente) britânico - são boas, daquelas que pegam ao ouvir e agradam muita gente. A interpretação das canções por parte de Luke Treadaway, que também é músico e possui sua própria banda, é competente, no melhor estilo "trovador solitário".
Não foi apenas para ser gentil que James Bowen aprovou a escolha de Luke Treadaway para interpretá-lo em Um Gato de Rua Chamado Bob, a ponto de defini-lo como "um perfeito James". Com uma sólida formação teatral (em 2013, foi escolhido como Melhor Ator no Laurence Olivier Award, um dos prêmios mais prestigiosos do teatro do Reino Unido) é, juntamente com seu irmão gêmeo Harry Treadaway (da série Penny Dreadful), considerado um dos principais nomes da nova safra de atores britânicos.
A atuação de Luke no filme é intensa, dedicada, comovente e convincente. Intérprete perfeccionista, chegou a dormir na rua para sentir-se na pele de um sem-teto ou, como disse James Bowen, "(...) passou aperto como músico tocando por uns trocados e sentiu como é ser invisível" . Sua performance é o trabalho de um grande ator que, se trabalhar bem a sua carreira, pode tornar-se um grande astro.
É claro que não poderíamos deixar de falar do outro "ator" principal, o Gato de Rua Bob. A princípio, ele não participaria do filme, seriam usados outros gatos como dublês. Mas, ao fazerem o teste, não foram aprovados, e Bob acabou por "interpretar" a si mesmo (os outros gatos foram utilizados em cenas consideradas mais arriscadas).
A decisão mostrou-se acertada. Bob mostrou desinibição diante das câmeras, "atuou" com naturalidade e não estranhou a equipe e o elenco, a ponto de subir aos ombros de Luke Treadaway do mesmo modo que faz com seu dono, James. Em seu livro, o autor brinca que, ao fazer isso, Bob fica parecendo um "papagaio de pirata".
Quando se vê - nas telas ou ao vivo e em cores - o mascote de James Bowen, dá para notar que, de fato, ele não é um gato de rua qualquer. Tem mesmo algo a mais, aquele algo que não é possível definir em palavras, mas que pode-se perceber somente ao olhar e que acabou por salvar a vida de seu "parça". Não foi a toa que a dupla tornou-se tão popular, principalmente na Grã-Bretanha.
O fato de ser namorada de Luke Treadaway na vida real ajudou a linda e talentosa Ruta Gedmintas na interpretação de sua personagem, Betty. Assim como seu namorado, ela está convincente no seu papel.
O restante do elenco não compromete, mas houve um desperdício de talento quanto a Joanne Froggatt, cujo papel da assistente social Val poderia ter sido melhor aproveitado.
Penso que a questão social abordada no filme poderia ter sido mais incisiva e não somente dar ênfase ao relacionamento James-Bob, ainda que essa seja a premissa deste trabalho.
Um Gato de Rua Chamado Bob foi, de modo geral, bem recebido pela crítica e, se não foi um grande sucesso nas bilheterias, pagou-se nas mesmas e ainda pode vir a dar lucro com os lançamentos em DVD e Blue-Ray.
Em 2017, Um Gato de Rua Chamado Bob conquistou o prêmio de Melhor Filme Britânico do National Films Awards UK superando o favorito Eu, Daniel Blake, do cineasta Ken Loach. E, conforme vem sendo comentado nos bastidores, pode haver uma sequência igualmente baseada no outro livro de memórias de James Bowen, O Mundo Pelos Olhos de Bob.
Embora a estreia de Um Gato de Rua Chamado Bob nos cinemas do Brasil tenha sido anunciada inicialmente para dezembro de 2016 e, posteriormente, para agosto de 2017, isso não ocorreu, ainda que eu tenha acompanhado os principais lançamentos nessas épocas. Até mesmo o lançamento em DVD, anunciado para março de 2017, não ocorreu. E olhe que eu procurei nas lojas. Somente consegui ver o filme pela internet.
Qual o motivo disso tudo? Ignoro, mas lamento, pois este é o tipo de filme que os brasileiros muito apreciam e que, estou certo, dariam um bom retorno nas salas de exibições.
Em uma de suas muitas entrevistas, James Bowen foi questionado se ter um animal de estimação pode ser a solução para a recuperação do flagelo do vício das drogas, ao que o músico e escritor respondeu:
"Deu certo comigo, mas não posso garantir que dê certo para outros".
Foi uma resposta sensata.
Um Gato de Rua Chamado Bob é, realmente, uma fábula destes tempos conturbados e incertos que vivemos agora, com a diferença de ser uma história real ao invés de fictícia. E, como toda a fábula, tem uma reflexão moral. Na verdade, são várias as reflexões.
A primeira e mais óbvia, é a história de superação por meio da determinação e força de vontade. Outra é sobre o poder da esperança e do amor incondicional e recíproco. A Boa Vontade não deve ser esquecida.
Entretanto, de todas as reflexões morais que Um Gato de Rua Chamado Bob levanta está a que pessoas cujas vidas não foram tão favorecidas não são invisíveis. Elas existem e não devem ser desprezadas, pois todos nós estamos sujeitos a infortúnios. O que aconteceu com esses "seres invisíveis e inexistentes" pode acontecer conosco também a qualquer momento, pois ninguém é completamente imune. É uma lição de humildade e modéstia que devemos aprender.
Por fim, a inspiradora e terna fábula desse sem-teto e seu mascote prova que, se quisermos realmente nos levantar dos grandes tombos que a vida nos dá, sempre haverá uma mão amiga para nos erguer ou, então, uma pata.