O Brasil não é exatamente um novato em filmes de gênero. Com relação aos filmes de terror, nosso cinema já teve exemplares muito interessantes, como os recentes Isolados ou O Amuleto, além dos clássicos estrelados e dirigidos por José Mojica Marins, nosso eterno Zé do Caixão, como À Meia-Noite Encarnarei no Seu Cadáver – mas, infelizmente, houve muito pouco destaque destas produções, seja por culpa do pouco espaço nos cinemas ou até mesmo o preconceito de nossa população com relação ao cinema nacional em geral. Mas, felizmente, O Rastro chega para quebrar esta lamentável barreira que impede de crescer este estilo de filme em nosso país.
Dirigido pelo estreante J. C. Feyer e roteirizado e produzido pela dupla André Pereira e Beatriz Manela, o inicio do longa já nos traz algo inusitado: a ausência daquelas intermináveis logomarcas de patrocinadores – algo comum em nosso cinema – o motivo de não aparecer isto em O Rastro provavelmente se deve ao capital levantado com uma co-produtora norte-americana envolvida no projeto. Mas não se engane: estamos diante de um projeto naturalmente brasileiro. A trama do filme não poderia se passar dentro de outro país – afinal, os personagens bem criados pelo roteiro enfrentarão ameaças que vão além de fantasmas – pelo contrario, encontrarão pela frente coisas terríveis que só a realidade do nosso país conseguiria conceber. E, posso estar sendo ousado em dizer isso, mas esta produção estreia em um momento propicio para poder conferir autenticidade em sua proposta.
A trama de O Rastro foca, inicialmente, no médico João Rocha (Cardoso), encarregado de transferir os pacientes de um velho hospital da capital carioca para outros centros de saúde – o lugar, bastante antigo e em condições precárias, foi embargado pela prefeitura da cidade. Enfrentando criticas de manifestantes – que não concordam com a situação atual da saúde no Rio de Janeiro (e no resto do país, é claro) – e a negação em sair do hospital por parte do diretor-chefe Heitor (Bloch), João conduz a transferência durante uma madrugada, mas, depois, ao notar que a paciente Julia (Guedes), uma criança, desapareceu misteriosamente, o médico passa a desconfiar de algum esquema de corrupção por traz de tudo – chegando a começar a enlouquecer, devido às aparições e sonhos com a garotinha – o que atrapalha sua relação com sua esposa Leila (Leal), que está gravida. Em um ambiente onde todos parecem estar escondendo algo, como a Dra. Olivia (Abreu) e o próprio diretor do hospital, João parece disposto a arriscar a vida para entender o que aconteceu com a menina.
Mesclando o tema do sobrenatural com uma critica funcional com relação as condições problemáticas da saúde pública brasileira, O Rastro provoca, de fato, uma ambientação rica em detalhes visuais impactantes para demonstrar o transtorno na cabeça do João do eficiente Rafael Cardoso – com influências óbvias do cinema de Alfred Hitchcock (planos feitos de cima para baixo) ou David Fincher (o uso de espelhos durante algumas cenas de diálogo), o diretor Feyer só perde um pouco a mão quando exagera em algumas angulações onde deixa os atores no canto da tela, enquanto deixa o restante da imagem de fundo toda vaga – sem demonstrar uma intenção clara do que pretende com isso – ou o exagero em usar o recurso do Rewind para as cenas em que mostra paredes, ralos ou pias de banheiro escorrendo água ou sangue – evidenciando o truque de utilizar a imagem de traz para frente.
Mas o primor visual se sobressai: a fotografia é inteligente em conseguir mostrar com um mínimo de luzes os escuros corredores do velho hospital – afinal, quem não tem medo de estar (ou apenas ver) um hospital à noite? E o uso muito interessante de mostrar o fantasma da menininha Júlia através de sombras nas paredes ajuda até a entendermos melhor as verdadeiras intenções dela – mesmo que quando descobrimos o que ela realmente quer seja um pouco menos assustador do que esperávamos – e ainda que lembre um pouco a cena da freira passando pelas paredes em Invocação do Mal 2, é um recurso inteligente para demonstrar um momento em que João se revolta ao não conseguir informações sobre pacientes desaparecidos.
Infelizmente, as falhas do longa se dão justamente por parecer tentar se comparar com representante estrangeiros do gênero – a composição da garota Júlia, obviamente, nos faz remeter à Samara Morgan de O Chamado – e o as tentativas de dar susto através dos gritos da menina são frustradas, exatamente pelo uso repetido – mas, em outros momentos, o diretor realmente demonstra um domínio em criar uma tensão crescente, especialmente até culminar o final do segundo ato – onde o protagonismo do longa é passado para outro personagem – fato que, infelizmente, devido à uma tentativa do roteiro em esconder (ou, melhor, omitir propositalmente) alguns acontecimentos para surpreender mais tarde, acabam dando uma pausa desnecessária na narrativa, prejudicando o clima de suspense parcialmente. Ainda assim, não tira o impacto do plot twist que se revela no terceiro ato.
O que acaba por compensar estes problemas é o excelente trabalho de sonorização e da trilha-sonora – recursos fundamentais para um filme de terror ou suspense funcionarem bem – os ruídos do hospital são realmente sinistros e mostram-se bem planejados para causar a ambientação correta – e a trilha-sonora de Fabiano Krieger e Lucas Marcier confere um trabalho envolvente, utilizando graves e acordes pesados de música eletrônica nos momentos necessários, sem soar óbvio – semelhantes aos da trilha de Garota Exemplar, composta por Trent Reznor e Atticus Ross.
Além desse cuidado que não deve em nada para o cinema de hollywood quanto a parte técnica, O Rastro tem um elenco que consegue impressionar, tamanho o número de ótimos artistas envolvidos – mesmo em papel que não lhe dá muitas chances de buscar alguma ousadia, Leandra Leal consegue mostrar muito bem o drama de não conseguir acreditar no marido, mas ao mesmo tempo em querer ajuda-lo – com algumas expressões tocantes até, mostrando como é uma excelente atriz; ainda existe as participações interessantes de Claudia Abreu, Jonas Bloch e Felipe Camargo – mas fica um atente especial para a breve atuação do ótimo e saudoso Domingos Montagner, como o governador Arthur Azevedo – o filme é dedicado ao ator falecido no último ano – seu papel tem uma importância vital para o entendimento de toda a critica social que o filme faz ao final – apesar de não ter sido executada de forma muito impactante.
Mesmo com problemas estruturais em seu roteiro bem intencionado com sua eficiente e válida – além de oportuna e assustadora, no fim das contas – critica ao sistema público de saúde (e politico) do Brasil, O Rastro ainda é uma bela prova de que nosso cinema tem condições técnicas e artísticas de embarcar mais vezes por filmes de gênero. Basta abrir a mente e deixar para trás o preconceito com o nosso riquíssimo cinema nacional.