Uma ode aos desajustados
por Renato HermsdorffUma ode aos desajustados, aos incompreendidos, aos outsiders, aos párias. Uma homenagem ao cinema. Um convite ao escapismo. É isso o que Guillermo del Toro faz com The Shape of Water, filme vencedor do Festival de Veneza 2017, uma produção de cativante beleza, interpretada por um elenco afiadíssimo (que deveria levar todos os prêmios da temporada).
Passada nos anos 1960 (quando a Guerra Fria pegava fogo), a história é apresentada como uma fábula, protagonizada por uma "princesa sem voz". “O que eu posso dizer sobre ela?”, anuncia o narrador. Mas ele logo se recolhe. Ao invés de dizer, del Toro mostra, usando a imagem como protagonista, na melhor concepção do que vem a ser o cinema.
Muda (e nem por isso infeliz), a faxineira Eliza Esposito (Sally Hawkins, hipnótica) trabalha numa base secreta do governo dos Estados Unidos, que inclui um laboratório comandado pelo doutor Hoffstetler (Michael Stuhlbarg). Uma criatura capturada nos confins da América do Sul é levada para lá. Pouco a pouco, Eliza vai se afeiçoando a ela. Sim, quem ama o feio bonito lhe parece.
Quando os norte-americanos decidem usar o "monstro" como cobaia na corrida espacial, entra em cena o agente policial moralista e sádico Strickland (um motivado Michael Shannon). Mas a vida do "visitante" corre perigo. E Eliza vai acionar o amigo e vizinho Giles (Richard Jenkins) - o mesmo narrador bissexto - e a companheira de trabalho Zelda (Octavia Spencer, a “boca” de Eliza, a quem cabe as falas mais divertidas) para ajudá-la em um elaborado plano.
Para Guillermo, não basta o preciso uso de todos os aspectos do cinema em confluência para um bem comum, ou seja, o de contar essa história (com destaque para o tom fluido azul esverdeado do lindo trabalho do diretor de fotografia Dan Laustsen). Eliza e Giles, um pintor fracassado, são fãs de musicais, cujo glamour servia como válvula de escape para a rotina de uma gente sonhadora. O elemento é aproveitado com maestria pelo roteiro assinado por del Toro e Vanessa Taylor dentro dessa estrutura narrativa. E até Carmem Miranda entra na dança.
Ficasse restrito ao aspecto lúdico, The Shape of Water já prestaria um serviço e tanto aos fãs de cinema. Mas, não. Guillermo vai ainda mais além, inserindo componentes… “picantes” que conferem ainda mais camadas a esse complexo e maduro microcosmos de personagens. É Shrek para maiores, se você preferir. Maiores de idade e evoluídos em maturidade.
A relevância do filme não seria possível (ou não teria o mesmo impacto, pelo menos) não fosse a sutileza da interpretação de Sally Hawkins, subaproveitada estrela de Simplesmente Feliz (2008), indicada ao Oscar de atriz coadjuvante por Blue Jasmine. Nesse ponto, o casting também diz muito sobre os objetivos da obra. Embora ninguém diga abertamente, para os padrões de Hollywood, Hawkins poderia ser considerada “feia”. Justo ela, que aqui diz com um simples gesto (ainda mais interpretando uma muda!) páginas e mais páginas de texto, em comparação a muita “bonita” bajulada aí pelo “meio”.
Nada é aleatório em The Shape of Water. Com o filme, Guillermo del Toro usa todas a ferramentas do cinema para criar um universo mágico, cheio de alegorias, que ilumina aqueles que não se encaixam. Se algum dia você já sentiu só no mundo, essa é a sua praia. Ou o seu tanque.
Filme visto no 42º Festival de Toronto, em setembro de 2017