Assassinos da Lua das Flores (Killers of the Flower Moon) 2023
"Assassinos da Lua das Flores" é uma produção Apple Studios lançada pela Apple TV+ sob o selo Apple Original Films, ao lado da Paramount Pictures. O longa-metragem é dirigido e produzido por Martin Scorsese, que co-escreveu o roteiro com Eric Roth (roteirista do clássico "Forrest Gump", de 1994). Leonardo DiCaprio é a estrela principal e também produtor do filme. O longa é inteiramente baseado no livro "Killers of the Flower Moon: The Osage Murders and the Birth of the FBI" do jornalista americano David Grann lançado em 2017, onde mostra os assassinatos dados a partir de circunstâncias misteriosas na década de 1920 em Oklahoma, assolando os membros da tribo indígena Osage logo depois que o petróleo foi descoberto em suas terras. Um chefe político local corrupto tenta roubar a riqueza dos membros tribais o que acaba desencadeando uma grande investigação envolvendo o poderoso J. Edgar Hoover, considerado o primeiro diretor do FBI.
Recentemente ao reassistir "Os Bons Companheiros" (1990), o que eu considero como a segunda melhor obra-prima de toda a filmografia do mestre Scorsese, eu afirmei que não era à toa que muitas pessoas e muitos críticos de cinema consideram o Scorsese como "o maior diretor de cinema do mundo ainda vivo". E novamente estou eu aqui para reiterar essa afirmação. O mestre Scorsese vive o cinema, respira o cinema, é um verdadeiro apaixonado pelo cinema, um pesquisador do cinema, um verdadeiro gênio da sétima arte, que ao longo de sua carreira já nos brindou com inúmeras histórias, inúmeras obras-primas, que estão nas listas dos maiores e melhores filmes de todos os tempos.
"Assassinos da Lua das Flores" é um dos trabalhos do Scorsese mais aguardado, e muito por esta produção ter um peso muito importante e muito relevante para a história do cinema. Temos aqui um trabalho que traz uma grande representatividade para o diretor, e muito pela sua forma de estudar o cinema, pela a sua filosofia por trás das suas obras, pela a sua peculiaridade em contar uma grande história, pois o Scorsese é um diretor meticuloso, que sempre busca a perfeição em suas obras e sabe contar e representar uma grande história no cinema.
No alto dos seus 81 anos, Martin Scorsese emprega a sua filosofia de se fazer cinema, a sua forma de estudar uma história, de trabalhar uma história, de se aprofundar em uma história, e mais do que isso, de fazer um grande trabalho de pesquisa com pessoas que fizeram parte da história que ele quer contar. Scorsese revelou que assim que leu o livro de David Grann imediatamente ele decidiu que precisava fazer um filme sobre o tema, o que logo o levou a iniciar um grande trabalho de pesquisas sobre a tribo indígena de Osage, tanto que ele passou horas com o Chief Standing Bear, um líder nativo, tentando convencer o povo Osage a ajudar com a sua produção. E o mais importante, é o fato do Scorsese respeitar os costumes e as tradições dos povos Osage, ou seja, idealizar toda a sua produção mais sempre mostrando um grande respeito pela cultura da tribo.
"Assassinos da Lua das Flores" é uma produção que dá voz ao povo Osage, que traz uma representação histórica fidedigna dos acontecimentos da época, soando como uma verdadeira denúncia sobre toda opressão e assassinatos que os povos Osage sofreram com a invasão dos EUA em suas terras pelo fato do famigerado "Ouro Negro", o petróleo. O longa traz um tema extremamente importante e que precisa ser do conhecimento de todos, afinal de contas estamos falando da ganancia, da opressão, da violência, da ambição humana. Como não somos americanos e não moramos nos EUA, não conhecemos à fundo toda a história do passado americano nem o que ele causou com cada um que atravessava o seu caminho. Mas fato é que os americanos carregam uma grande mancha em sua história, e uma mancha de violência, de crueldade, de sangue, e que poucos conhecem. Eu mesmo não conhecia essa parte da história americana que foi contada no filme do Scorsese.
É preciso destacar que "Assassinos da Lua das Flores" vai contra quase tudo que normalmente conhecemos sobre o cinema norte americano, e digo isso por ser um tema que soa como uma denúncia contra os próprios americanos, já que os americanos sempre mostram a sua visão estereotipada de determinados fatos da sua história. O longa mostra além de tudo uma visão histórica que aborda a crueldade e a ganância do homem branco contra os índios, um ponto que já foi base para outras produções cinematográficas ao longo da história. E aqui temos um ponto muito interessante do roteiro de Scorsese e Eric Roth, que é uma certa mudança na abordagem do tema principal do livro de David Grann. No livro temos toda a abordagem que investiga os assassinatos das dos povos Osage, além é claro, a investigação por trás dos crimes que deu origem ao surgimento da "Bureau of Investigation", o que hoje conhecemos como "Departamento Federal de Investigação dos EUA", o grande FBI. Scorsese revelou que não seguiu exatamente só esse tema, que ele também quis se aprofundar na questão do romance entre o americano e a mulher Osage, ou seja, Scorsese não queria que seu filme fosse visto apenas como uma abordagem sobre o homem branco, mas também sobre os indígenas.
"Assassinos da Lua das Flores" traz uma história interessantíssima, e a forma como o Scorsese conta essa história deixa ainda melhor. Eu afirmo que não seria qualquer diretor que conseguiria nos prender por 3h 26min em uma história fiel, voraz, inteligente, muito bem adaptada, que soube mesclar um drama como uma ação abordo de uma denúncia policial. Temos aqui um Scorsese sendo Scorsese, que sempre foi um mestre em nos surpreender com narrativas tensas sobre uma ascensão e queda (vide o maravilhoso "O Lobo de Wall Street", de 2013). Aqui Scorsese traz um discurso de denúncia que por si só já soa com uma certa complexidade, com uma temática difícil de ser abordada, pois não é só contar uma história mas sim representar aquela traição, aquela crueldade, aquela ganância dos americanos e a impunidade contra os povos Osage.
"Assassinos da Lua das Flores" já tem um início avassalador com aquele diálogo contundente entre o Ernest Burkhart (DiCaprio) e seu tio William Hale (De Niro), assim que ele chega em sua casa a pedido do próprio tio. A partir daí o filme transcorre em um ritmo acertado ao nos contar e nos emergir naquele ambiente do povo Osage. Vemos como o Ernest tem todo aquele charme de conquistador quando ele passa a dirigir para a Mollie Burkhart (Lily Gladstone). E aqui vemos o Ernest mostrando o seu carisma, tentando conquistar a atenção da Mollie, e sim, ele não passa de um fantoche do seu tio, o verdadeiro pau mandado. Já a Mollie no início é um poço de mistério, fechada, contida no seu canto, sem expressar seus sentimentos ou seus traumas, mas aos poucos ela vai sendo conquistada por Ernest. Já o William é o manda-chuva, o todo poderoso, que se faz de amigo dos Osage mas não passa tudo de um grande plano para dar um grande golpe na tribo junto com seu sobrinho Ernest.
Sobre o elenco:
Leonardo DiCaprio mais uma vez constrói um personagem impecável. É impressionante como sempre o DiCaprio estuda muito bem o seu personagem, se doa completamente para o seu personagem, ao ponto de esquecermos de todos os outros personagens que ele já fez. Aqui DiCaprio traça a linha do personagem que quer se dá bem na vida, que almeja o dinheiro, que almeja o interesse antes de qualquer coisa, mas age como um fantoche, como um estúpido, sendo apenas uma muleta para os planos do tio em tomar a riqueza dos povos Osage. Eu fico sempre embasbacado com o nível de atuação que o DiCaprio constrói e entrega em todos os seus personagens, por mais que eu já tenha assistido inúmeros filmes dele mas eu sempre me surpreendo. DiCaprio é um gênio na arte de atuar, e aqui podemos comprovar mais uma vez o seu poder de transformação no personagem, que vai desde aquele carisma de galanteador que quer se enriquecer a qualquer custo inicialmente, até a sua desconstrução e queda, e cada passagem tem uma interpretação milimetricamente condescendente com o momento do seu personagem - uma interpretação que me remete ao seu próprio personagem na obra-prima "O Lobo de Wall Street", o icônico Jordan Belfort.
Já Lily Gladstone faz a sua principal personagem da carreira. Lily incorpora com excelência a Mollie, a herdeira das terras de petróleo da sua tribo, o que sempre vai despertar interesse dos homens ao seu redor, os homens brancos. E aqui é muito interessante acompanhar a construção e o desenvolvimento que a Lily cria para a sua personagem, que assim como eu já destaquei anteriormente, inicialmente ela é misteriosa, fechada embaixo de toda aquela sua vestimenta, completamente trancada para a aproximação masculina, mas é o Ernest que consegue quebrar esse seu bloqueio. A cada cena da Lily íamos comprovando a grande atriz que ela é, pois ela soube personificar a sua personagem, dá o tom exato para cada momento, que ia desde a sua forma de conversar, de se expressar, de ir saindo daquela personalidade fechada e se desconstruindo. A partir do momento que ela passa a sofrer por causa da diabete (ou por causa das injeções que ela tomava), sua atuação cresce ainda mais, pois enquanto enferma ela se mostrava ainda mais aguerrida. Uma elegantérrima atuação de Lily Gladstone, que em certos momentos esteve em pé de igualdade com o DiCaprio e o De Niro.
Robert De Niro é um absurdo, um dos melhores atores da sua geração ainda em atividade. É impressionante como o De Niro junto com o Scorsese só nos entregou trabalhos em altíssimo nível. Ao longo da história este casamento já nos brindou com inúmeras obras-primas, e aqui temos mais uma página fabulosa dessa incrível parceria da história do cinema. O Scorsese sabe exatamente o personagem que ele vai entregar para o De Niro, que é sempre um personagem que é o centro das atenções, onde a história passa muito por ele, se desenrola a partir dele, se desconstrói a partir dele, e aqui temos exatamente esse perfil no personagem do De Niro. De Niro constrói um dos seus personagens mais destetáveis da carreira, e muito pela sua forma de se portar como um amigo, uma pessoa de confiança, de se mostrar empenhado pela causa dos povos Osage, quando na verdade ele não passava de um ser asqueroso, mesquinho, repugnante, frio e totalmente calculista. William Hale era um ser extremamente preconceituoso, que agia unicamente em prol da sua ambição da riqueza dos nativos, e ainda usava pessoas como marionetes ao seu favor. Somente um ator do calibre do De Niro para nos causar repulsa e nos fazer criar ódio mortal pelo seu personagem. Uma atuação estupidamente perfeita desse gênio chamado Robert De Niro.
Completando o elenco:
Jesse Plemons vive o personagem Tom White, o agente do FBI que vai até o local dos crimes e passa a investigar o William Hale. Jesse entra já na parte final do filme mas não deixa de ser importante para o contexto final da história, principalmente no encalço do William e nos confrontos com o Ernest. Jesse Plemons se encaixa perfeitamente nesses personagens, ele tem um timming para compor toda a sua interpretação. Curioso que originalmente o papel de Tom White havia sido oferecido ao DiCaprio, mas o ator optou por tentar interpretar o Ernest Burkhart. Foi ai que o Scorsese escalou o Jesse Plemons para o papel do Tom White.
Brendan Fraser é mais um que aparece somente nas partes finais do longa, ele interpreta o Hamilton, o advogado de William Hale. Brendan não tem um grande destaque mas em suas aparições ele consegue se impor com seus discursos.
Sobre as qualidades técnicas:
Elogiar a direção de Scorsese é simplesmente chover no molhado. Scorsese não dirigi um filme ele dá aula. Um dos pontos altos da direção do Scorsese está exatamente na sua captação dos movimentos dos ângulos de câmeras para captar cada reação e expressão de seus atores em cenas. A trilha sonora foi composta pelo ex-colega universitário de Scorsese, Robbie Robertson. O longa marca a décima primeira e última colaboração entre Scorsese e Robbie Robertson, que morreu dois meses antes do lançamento do filme. O filme é dedicado a Robertson. Devo afirmar que a trilha sonora de "Assassinos da Lua das Flores" é magnânima, homogênea, compenetrada, primordial em cada cena, onde contribuía com toda a tensão, principalmente na parte final do longa (o julgamento).
A fotografia de Rodrigo Prieto marca a sua dobradinha em 2023, já que ele também atuou em "Barbie". A fotografia principal ocorreu nos condados de Osage e Washington, Oklahoma, trazendo assim mais fidelidade para a história, já que o filme foi rodado exatamente no mesmo local dos acontecimentos reais. Rodrigo faz um trabalho que é mais um grande destaque do filme, pois esteve o tempo todo muito bem ajustado, ditando bem o ritmo da história unicamente pelo seu enquadramento de cada cena. A direção de arte é outro show à parte, completamente fiel com a época do filme, o que logo se destaca notavelmente. Em questões técnicas o longa do Scorsese é a referência do ano, e poderá ser muito bem reconhecido nos festivais de premiações.
"Assassinos da Lua das Flores" teve um orçamento de US$ 200 milhões, supostamente a maior quantia já gasta em uma filmagem em Oklahoma. O filme arrecadou mais de US$ 156 milhões em todo o mundo. O longa ganhou o prêmio de Melhor Filme no National Board of Review e foi eleito um dos 10 melhores filmes de 2023 pelo American Film Institute. Também foi indicado a sete Globos de Ouro, incluindo Melhor Filme - Drama.
O longa-metragem foi muito bem aceito e teve excelentes críticas em um modo geral. No Rotten Tomatoes, o filme detém um índice de aprovação de 93% com base em 435 resenhas, com uma classificação média de 8,5/10. Já o Metacritic atribuiu ao filme uma pontuação média ponderada de 89 em 100 com base em 63 críticos.
"Assassinos da Lua das Flores" tem uma duração de 3h 26min, o que para muitos será o principal motivo para desistir de assistir o filme. Entendo que o filme é consideravelmente longo, que é uma marca do próprio Scorsese, mas o que surpreende é a forma como essas 3h 26min é bem distribuída no decorrer da história. Temos aqui uma história muito bem contada, muito bem amarrada em cada cena, que nos prende pela curiosidade e pela vontade de ver até onde vai essa ambição doentia e incontrolável. Quando o filme começa a pesar logo o Scorsese trata de trazer um novo ânimo, um novo fôlego para a história, que é justamente a chegada do FBI para as investigações. A partir daí o filme volta a crescer, volta a ficar interessante, pois temos toda a parte em que o Ernest é preso e logo após interrogado. Depois temos uma sequência de cenas na parte do tribunal, onde aquele interrogatório final é fantástico. Só acho que especificamente essas partes finais do julgamento poderiam ter sido mais exploradas, acho que ficou devendo um pouquinho nesse ponto. Ainda temos aquele diálogo final da Mollie com o Ernest, que já torna a cena completamente emblemática.
No mais, "Assassinos da Lua das Flores" é uma obra fantástica, imponente, avassaladora e extremamente importante para o contexto histórico americano. Uma obra meticulosa que mostra até onde vai a ambição, a ganância, a traição, a crueldade e principalmente a impunidade, pois o "Ouro Negro" pode ser visto como algo inovador, próspero e muito importante, mas junto com ele também vem todas as mazelas do ser humano.
No final Scorsese encerra a sua obra de forma catártica e poética, nos evidenciando com aquele testemunho sobre o final de cada personagem da história, com o próprio Scorsese em cena lendo o relato final da Molly Cobb, o que me leva a crer que foi o depoimento do caso real.
Senhoras e senhores, que final!
[01/01/2024]