Um documentário popular
por Bruno CarmeloTalvez o primeiro elemento de destaque no projeto dirigido por Agnès Varda e JR seja o tom. Visages, Villages é surpreendentemente leve, divertido, repleto de piadas verbais e imagéticas. Os documentários têm encontrado dificuldade em se comunicar com o público médio, porém a dupla encontrou uma linguagem pop e ágil o suficiente para transmitir as suas ideias ao espectador jovem. Este é um filme da era digital, do selfie, do faça-você-mesmo – o baixo orçamento, aliás, foi obtido através de financiamento coletivo na Internet. O resultado foi um grande sucesso de bilheteria e crítica na França. É possível esperar uma recepção igualmente calorosa em outros mercados, guardadas as proporções de cada circuito.
O conceito por trás da obra é interessante: tanto a veterana Agnès Varda quanto o artista plástico JR são fascinados por retratos e pela representação das classes populares. Por isso, numa conversa amigável, decidem circular pelos vilarejos campestres do país em busca de histórias pessoais, convertidas posteriormente em imensos painéis nas paredes de casas, galpões agrícolas, fábricas. A ideia é reinvestir o espaço urbano de humanidade, relembrar que aquelas cidades, muitas delas em colapso econômico, resistem graça à persistência de agricultores e agricultoras que mantêm vivo um certo espírito da “França profunda”, tradicional. “A felicidade está no campo”, diz o provérbio local, reforçado pelo filme.
O projeto visual é transformado num diário de viagem, no qual Varda e JR circulam com um carro lúdico em forma de máquina fotográfica. O teor das imagens sugere espontaneidade, amadorismo, em virtude da captação em textura digital de baixíssima qualidade e som deficiente. Visages, Villages lembra o passeio pelo InstaStories de duas figuras criativas, cheias de energia, encarando o seu trabalho como uma grande brincadeira. Enquanto passeiam, os amigos brincam uns com os outros, narram a trajetória numa voz off didática e recitam diálogos em jogral.
Tamanha ingenuidade contamina o resultado para o bem e para o mal. No aspecto positivo, os cineastas jamais permitem que o questionamento reflexivo sobre a representação das imagens se torne abstrato demais. No aspecto negativo, eles perdem a oportunidade de utilizar este esforço artístico para tecer um comentário articulado sobre a oposição entre campo e cidade, entre a invisibilidade dos trabalhadores e a onipotência das instâncias de poder. Mesmo partindo de uma ideia evidentemente social, os criadores evitam a sociologia.
Durante os depoimentos, homens e mulheres contam um pouco de suas histórias pessoais, mas a montagem logo interrompe as histórias para revelar o grande painel colado na parede e pular para o vilarejo seguinte. Às vezes, a dupla se interessa mais pelos murais do que pelas pessoas que os inspiram – caso de uma garçonete, incomodada com a imagem que dela fizeram dela, e que claramente não conhecia as intenções exatas dos diretores quando foi abordada.
Afinal, existe uma responsabilidade no ato de representar alguém, especialmente nos documentários. Varda, cineasta de notória preocupação política, tem sua voz abafada pelo histrionismo de JR, que enxerga no mundo um terreno de jogos. Ele está preocupado em intervir, enquanto ela se preocupa com os motivos da intervenção e o modo de fazê-la. O caso de um bunker plantado na areia da praia evidencia essa postura: ele tira medidas e marca a data para a colagem, mas ela o interroga sobre o fato de ainda nem terem escolhido o que colar ali. Para JR, a forma prevalece sobre o conteúdo, o gesto antecede a reflexão.
Talvez as brincadeiras e falsas provocações, encenadas entre os dois, assegurem a diversão. No entanto, os habitantes se tornam coadjuvantes do projeto dedicado a eles. Seus rostos ficaram gravados nos edifícios, mas suas histórias, motivações e frustrações foram superficialmente retratadas.
Filme visto na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2017.