Má gestão de água que mata o povo
por Sarah Lyra"A chuva é a vida da terra. E a vida da terra é as árvores (sic). E a vida das árvores é a água. Se não tiver água, nada feito". Da maneira mais simples e direta, seu Antônio, morador de Correntina, na Bahia, resume a problemática de O Verde Está do Outro Lado: a falta de água. Ou melhor, o desvio da água feito por corporações, o que deixa a população local dependente de carros-pipa para sobreviver e os obriga a escolher entre cozinhar e lavar roupas, por exemplo, porque não há recurso suficiente para todas as atividades. A constatação não é intelectual, vem a partir da observação de práticas que permeiam famílias por décadas; os pequenos agricultores viram seus pais e avós plantarem num sistema que, de repente, a nova geração se vê obrigada a abandonar, pela primeira vez em 75 anos, além da necessidade de sair da zona rural e se mudar para a cidade porque a água secou.
Neste documentário sobre o impacto causado pela má gestão de recursos hídricos, no Brasil e no Chile, Daniel A. Rubio adota uma estética semelhante à de vídeos caseiros dos anos 1990, enquanto seus entrevistados, informalmente identificados com um "seu" precedendo seus nomes, falam das dificuldades geradas pela ausência de água em suas regiões. No caso do Chile, há ainda a questão da privatização do recurso, parte de um modelo de lucro e exclusão previsto na Constituição de 1981, aprovada durante a ditadura de Augusto Pinochet e que obriga grande parte da população a racionar água, principalmente na região de Petorca, no interior de Valparaíso.
É justamente em Petorca, área em que se cultiva 4% dos abacates do país, que o verde do outro lado, referido no título, fica evidente ao espectador. Enquanto as fazendas de grandes produtores recebem outorga do Estado chileno para explorar águas superficiais e subterrâneas daquela região, as áreas povoadas implementam um sistema de revezamento da pouca água disponível, para impedir a morte das plantações da qual dependem para sobreviver. De um lado, terras secas com abacates e maracujás tão pobres em água, que esfarelam ao cair no chão. Do outro, uma grande superfície verde alimentada por poços que, ao serem abertos, direcionam a água para a subida da montanha, secam os rios e acabam com o vale.
A complexidade do tema se dá, principalmente, pelo fato de a prática ser legalizada. Através da fala acessível de seus entrevistados, aliada a uma montagem didática, Rubio aposta em um tom jornalístico para passar sua mensagem de injustiça social. Isso fica evidente em cenas como a do povoado de Petorca se articulando para participar do Comitê de Defesa da Água, uma reunião que, supostamente, trata das decisões relacionadas a questões regionais. Ao notarmos a ausência de representantes das empresas produtoras agrícolas, fica claro que essas pessoas estão fazendo tudo a seu alcance, mas não conseguem ser ouvidas. Até mesmo a votação para aprovar estatutos é feita proporcionalmente à quantidade de ações de propriedade, o que tira do povo qualquer chance de vencer os grandes produtores. Tudo justificado pela garantia de novos empregos, algo facilmente desmascarado pelas imagens de automatização do processo mostradas no documentário.
A discussão, embora poderosa, é prejudicada em alguns momentos pela tendência do roteiro a recorrer a clichês narrativos, como ao inserir uma narração em off com o famoso trecho do livro Pale Blue Dot, (Pálido Ponto Azul, em referência a uma imagem do planeta Terra visto do espaço) escrito por Carl Sagan, sobre a necessidade de "preservar o único lar que conhecemos". A correlação entre o surgimento do pensamento neoliberal com os Chicago Boys, a ditadura de Pinochet e o imperialismo norte-americano, embora justificada — é o Estados Unidos o destino da água vendida no Chile —, é pouco aprofundada, assim como o segmento brasileiro da trama, e serve apenas como recurso de abertura e fechamento para o documentário. Ainda assim, O Verde Está do Outro Lado se torna relevante pela potência de seu recorte e pela importância social de dar voz àqueles que, por vezes, sofrem ameaças de morte, censura e perseguição pelo simples fato de lutar pelo direito à água.