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    Barry
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Barry

    "Homem invisível"

    por Renato Hermsdorff

    Há muito simbolismo (quase easter eggs) espalhados por Barry, a cinebiografia do jovem Barack Obama, focada no início da vida universitária daquele que viria a ser o futuro presidente dos Estados Unidos (embora a produção não dê qualquer indício óbvio que permita fazer essa previsão). O filme começa em 1981, com o ainda “Barry” voando de Los Angeles para Nova York, para onde se transferiu. Sustentando o cigarro que o acompanha boa parte da projeção, ele lê a carta de incentivo do pai nesse momento de mudança.

    Assim que chega na Big Apple, passado o susto de ser jogado numa cidade nada receptiva, encontramos a mão do rapaz sustentando uma cópia de “Homem Invisível” – romance de Ralph Ellison publicado em 1952, que narra a migração de um jovem negro do sul racista do EUA para o Harlem (NY) no início do século XX. Lá, ele se depara com um universo bem diferente do que imaginava e, ignorado tanto pelos brancos preconceituosos, quanto pelos negros radicais, ele involuntariamente adquire a característica do homem do título.

    Diz-se que o romance serviu de modelo para o livro de memórias que Obama viria a escrever em 1995, “Dreams from My Father” (ou “Sonhos do meu pai”, traduzido no Brasil como “A Origem dos Meus Sonhos”), depois de ter sido o primeiro negro presidente da Harvard Law Review. Barry bem que poderia se chamar “Invisible Man”.

    Não bastasse a confusão das raízes mistas, Barry, negro nascido no Havaí, filho de pai queniano e mãe do Kansas, num ambiente de jovens brancos predestinados ao sucesso financeiro de Wall Steet (“Faculdade não é ensinamento, é treinamento”), se sente isolado (“Quando eu abro a boca, parece que estou falando em nome de toda uma comunidade”).

    Como um cara “normal” de 20 anos, ele joga basquete, frequenta festas, dança, fuma (não só o cigarro liberado). Em busca da sua “turma”, acaba criando laços com o outsider – e hilário – paquistanês Saleem (Avi Nash). E, claro, namora. Anya Taylor Joy, irreconhecível desde que interpretou a protagonista de A Bruxa (2015), é a garota que cai no canto de Obama. Madura, ciente de suas escolhas, a personagem é bem construída e um dos destaques do roteiro do filme. “Política é besteira”, diz, ironicamente, o jovem Barry, mais interessado em artes e... no chamego com a namorada.

    Seja assistindo a Orfeu do Carnaval (sim, o filme franco-brasileiro vencedor do Oscar), seja no contraste da figura paterna - ausente fisicamente - com a mãe hippie e alegre interpretada por Ashley Judd (ótima), a produção é salpicada de sutilezas que dão conta de traçar um perfil ao mesmo tempo cool e comedido do imberbe Barack (interpretado por um estreante e seguro Devon Terrell). E, além de desmistificar o personagem, tampouco o filme o trata como um herói inquestionável.

    Foi um desafio e tanto a que se propôs o pouco experiente diretor Vikram Gandhi – com texto do igualmente desconhecido Adam Mansbach. O retrato do homem enquanto jovem consegue evitar o caminho fácil dos clichês (um campo minado nessa trajetória), para entregar uma obra bem autêntica. Tecnicamente convencional, é verdade, mas sem afetação (não espere discursos inflamados ou clipes de Oscar). É claro que a questão racial é importante para a história. Mas há mais de cinquenta tons de cinza entre o preto no branco que se costuma ver por aí quando o assunto é racismo.

    Barry é só um homem comum cheio de dúvidas e em busca de autoconhecimento. Tudo bem que ele viria a ser celebrado como o primeiro presidente negro da nação mais poderosa do mundo. Mas isso é outra história.

    Filme visto no 41º Toronto International Film Festival, em setembro de 2016.

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