Civilização e barbárie
por Bruno CarmeloUma planta carnívora devora um pequeno inseto. A metáfora introduz da maneira mais clara possível o ideal de carnificina proposto em O Banquete, huis clos brasileiro que reúne ao torno de uma mesa diversos peões do xadrez social brasileiro: a diretora de um jornal, um colunista, um advogado, uma atriz, o povo (representado por um garçom), uma crítica de arte... Juntos, eles se insultam e se seduzem, se ameaçam e se beijam. O encontro está a um passo da orgia ou do assassinato, o que vier primeiro.
Daniela Thomas demonstra prazer em fazer um “filme de personagens”, compreendido como uma ação movida apenas por diálogos, com enquadramentos colados ao rosto dos convidados. O roteiro constitui uma metralhadora verbal: Nora (Drica Moraes) e seus convidados enchem a boca para falar sobre vaginas, e depois sobre Platão; sobre pênis eretos, e em seguida, sobre Sócrates. A intelectualidade brasileira, mais especificamente aquela de esquerda, é reduzida a seres desprovidos de interioridade, para os quais toda pulsão precisa ser exposta ao limite da explosão. A experiência se assemelha a uma espécie de terapia coletiva. Todos são igualmente cínicos, violentos e libidinosos no roteiro que se considera subversivo e descolado por colocar tantos termos chulos na boca de seus atores.
É curioso assistir a este drama logo após a reação violenta da crítica contra Vazante, da mesma diretora. O filme foi acusado de racismo em 2016, e a cineasta falhou ao tentar se defender durante o festival de Brasília. Acabou pedindo desculpas pelo filme num primeiro momento, e contra-atacando em seguida. Hoje, O Banquete poderia ser visto como uma caricatura desta mesma esquerda que a atacou, e à qual sempre fez parte (vide os belos O Primeiro Dia e Linha de Passe) – se não fosse pelo fato de o projeto ter nascido antes de toda a polêmica. No entanto, os temas são tão amplos que se prestam a diversas leituras sintomáticas como esta.
A cineasta pretende se colar a um momento histórico preciso: os anos Collor, durante a “lei da imprensa” que trataria os artigos contrários ao governo como motivos legais de prisão. Este recorte possibilita ao filme fugir à histeria antipetista contemporânea e refletir sobre os efeitos da direita no poder, pertinentes à gestão Temer e às eleições iminentes em 2018. No entanto, para além de algumas sugestões vagas (um poderoso homem ao telefone tem o sobrenome Neves), a narrativa se limita ao mal-estar da classe artística e jornalística contra regimes opressivos, sem sugerir ideias sobre a origem dos conflitos, nem alternativas para a superação dos mesmos.
Por fim, resta a evidente diversão do elenco em se digladiar. Os atores abraçam seus personagens com ferocidade quase incontrolada pela direção: Drica Moraes é excelente, mas corre o risco de passar da conta rumo ao final. Bruna Linzmeyer se sai bem na caricatura da jovem sedutora, Caco Ciocler está muitos graus acima do realismo desde a primeira cena, Mariana Lima se entrega numa composição à beira do desespero. Avesso a sutilezas, o texto proporciona uma sucessão de catarses deliciosas para qualquer ator, ainda que soem lineares demais ao espectador ao evitarem transformações reais nos personagens.
O subgênero da burguesia guerreando num espaço fechado (Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, Deus da Carnificina, O Jantar) é essencialmente baseado na gradação: o conflito minúsculo que se torna cada vez mais forte, até a explosão. No entanto, O Banquete investe na agressão mútua desde os primeiros minutos, tornando o ritmo repetitivo, aborrecido. Apesar de a narrativa sugerir a concretização das ameaças desde o início, nem a carnificina nem o sexo oferecem o gozo prometido. Assim, a história é obrigada a se concluir de modo abrupto, suspendendo o espetáculo por falta de combatividade dos lutadores.
O filme se encerra com a constatação da nossa incivilidade contemporânea. Os atos se tornam inconsequentes, o que retira a sensação de suspense e urgência: todos já fizeram sexo com todos, e isso não parece constituir um problema; Mauro não parece correr risco real de ser preso pelo artigo contra Collor. Thomas oferece um olhar panorâmico sobre arquétipos relevantes, enquanto aborda o sexo de maneira despudorada e permite alguns (raros) silêncios para enriquecer a narrativa. No entanto, o valor deste mecanismo se encontra mais no fato de essas pessoas discursarem livremente do que no conteúdo de suas falas. No fim das contas, o que têm a dizer é pouco mais do que o desabafo de um grupo de amigos alcoolizados.