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    Armas na Mesa
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Armas na Mesa

    A mulher-máquina

    por Bruno Carmelo

    Há algum tempo, grupos solidários à igualdade de gêneros têm exigido a presença maior de mulheres em grandes produções, para além dos papéis tradicionais de namoradas, esposas e mães dos protagonistas homens. O protagonismo feminino está crescendo, mas de maneira curiosa: algumas vozes entre as feministas destacam o perigo de transformar a mulher forte numa figura despótica, como se personagens femininas estivessem presas a extremos: ou são namoradas delicadas, ou são executivas poderosas, porém desprovidas de sentimentos.

    Elle, liderado por uma executiva sociopata (Isabelle Huppert), How to Get Away With Murder, série sobre uma advogada (Viola Davis) capaz de aplicar qualquer método ilegal para vencer seus casos, O Abutre, suspense incluindo uma jornalista inescrupulosa e sensacionalista (Rene Russo) e Irrepreensível, retrato de uma mulher manipuladora (Marina Foïs) são alguns exemplos de empoderamento feminino que deixam um gosto amargo por aproximar a liberdade da mulher a uma forma de perigo social ou debilidade psíquica. O mesmo questionamento poderia ser feito a Elizabeth Sloane (Jessica Chastain), protagonista de Armas na Mesa.

    Sloane não tem família, não tem amigos, não tem namorados. Para conquistar o altíssimo cargo de lobista em Washington, ela abriu mão de uma vida pessoal – algo que muitos roteiros consideram indispensável às mulheres de sucesso. Impecável em seu trabalho de manipulações no congresso, ela é uma verdadeira mulher-máquina. Sem sentimentos, aceita trair os colegas mais generosos, como Rodolfo Schmidt (Mark Strong), humilhar as colegas mais gentis, como Esme Manucharian (Gugu Mbatha-Raw) e tratar de modo arrogante um dos poucos homens que se preocupam com seu estado emocional, caso de Forde (Jake Lacy).

    Como construção de personagens, Armas na Mesa pode deixar uma má impressão no início. Felizmente, Jessica Chastain é uma atriz excelente, capaz de trazer nuances à mulher comparada pelos colegas a um “cubo de gelo”. Mas o filme se importa muito pouco com a mulher por trás dos truques. Para o diretor John Madden, o que interesse é Sloane como profissional e estrategista. Neste sentido, o projeto explora com destreza as regras do suspense: algumas explicações políticas apressadas no início cedem espaço a um jogo de gato e rato entre lobistas e políticos bem orquestrado pela montagem, trilha sonora e atuações. Todo o elenco está afinado e verossímil em seus papéis.

    A principal intenção do projeto é reafirmar o aspecto perverso da política norte-americana, destacando escândalos de corrupção, conflitos de interesses e outros crimes. O retrato pessimista adquire um significado particular na era Donald Trump, um magnata-presidente que não fornece provas concretas de que vai abandonar os negócios pessoais, nem revela as suas declarações de impostos como se esperaria de qualquer pessoa neste cargo. O thriller funciona como sintoma da descrença na política, quando as abstenções ao voto atingem índices recordes e as populações votam cada vez mais em figuras que se vendem como “apolíticas” ou “diferentes dos políticos” – embora não o sejam, é claro. Elizabeth Sloane ostenta o cinismo máximo diante desta realidade: sabendo que todos são passíveis de corrupção, ela sequer finge possuir o verniz de moralidade apresentado pelos candidatos a cargos políticos.

    Armas na Mesa se desenha como um projeto curiosamente amoral durante a maior parte da narrativa. Somos convidados a torcer pela lobista que usa meios questionáveis para atingir fins nobres. É perdoável adotar técnicas corruptas para um objetivo pacifista como o maior controle de armas? A ética constitui um elemento perfeitamente negociável neste emaranhado bem costurado de perversidades, que entretanto ainda soa como telefilme por sua incapacidade de imaginar qualquer forma de ambiguidade imagética ou narrativa. Temos uma sucessão de diálogos irritados em escritórios frenéticos, ou brigas acirradas em casa sombrias. O que aconteceria quando Sloane perdesse a sua máscara? O que existe por trás da máquina? Este elemento, o mais interessante de todos, permanece inacessível ao espectador.

    É uma pena que o final opte por uma reviravolta empolgante, mas inverossímil em relação à personalidade da protagonista. É uma pena, igualmente, que o retrato de uma mulher forte seja condicionado à subtração de sua parcela de humanidade. Mas o filme ainda possui méritos consideráveis dentro da lógica do cinema de gênero. Para um diretor conhecido pelas produções piegas e pomposas (Shakespeare Apaixonado, O Exótico Hotel Marigold), uma investida nos bastidores sujos de Washington representa uma bem-vinda mudança de perspectivas.

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