A cega que enganou o ladrão
por Bruno CarmeloEsperanza (Laura de la Uz), uma mulher cega, tem sua casa invadida pelo ladrão Mario (Luis Alberto Garcia). O homem de cabelos rastafári pensa em roubar alguns objetos, mas desiste. Pensa em estuprar a moradora, mas não o faz. Enquanto o possível agressor decide os seus planos, a religiosa Esperanza bola um plano infalível para distrair qualquer ladrão: começa a contar histórias para ele, pedindo para que leia os relatos de amor e da revolução cubana. O invasor o faz, fica cada vez mais absorto nas narrativas e deixa a violência de lado.
Espejuelos Oscuros é um filme que exige muita boa vontade de seu espectador para acreditar na trama absurda. Talvez ela faça mais sentido se interpretada como fábula, com arquétipos precisos (a mulher contra o homem, a pura contra o corrupto, a casta contra o sexualizado) tentando ensinar algum tipo de malícia aos jovens quanto aos perigos da vida em sociedade. Esperanza, afinal, não é muito diferente da Chapeuzinho Vermelho buscando driblar o lobo mau.
O problema do projeto cubano é o fato de não assumir o tom fabular. Pelo contrário, o drama leva-se muitíssimo a sério, incluindo histórias sentimentais do povo cubano nos textos lidos por Mario. Nestas simulações, os mesmos dois atores interpretam um general e a esposa de um homem rico, uma mulher do campo e um revolucionário que pede abrigo, uma prostituta e um perigoso cliente. Estamos, de fato, no território do faz de conta, com os personagens imaginando a si mesmos na pele de outros personagens. Curiosamente, todas essas histórias envolvem sedução sexual por parte da mulher, algo um tanto questionável na trama de uma personagem buscando evitar o estupro.
A diretora estreante Jéssica Rodriguez trabalha a partir de um orçamento visivelmente limitado, adotando soluções frágeis para driblar as dificuldades de produção. A mise en scène é inexistente: os dois falam sentados num cômodo, levantam-se sem motivo algum e continuam a contar histórias de pé, depois falam mais um pouco na cozinha, depois sentam mais uma vez na cadeira da sala, e falam. A dinâmica seria fraca no palco de um teatro, no entanto se torna ainda mais insuficiente no cinema.
Luis Alberto Garcia demonstra certa destreza na variação de personagens, mas Laura de la Uz exagera nas expressões e na declamação de cada frase, em tons que abusam do drama (“A vida é muito dura! Que horror!”, ela exclama com os olhos arregalados) e beiram a paródia involuntária. Durante toda a projeção de Espejuelos Oscuros, os exageros apontam para um possível humor, que faria bem ao projeto se fosse assumido como tal. Afinal, os diálogos são tão pobres e os recursos técnicos (iluminação, montagem, direção de arte) tão pouco refinados que fariam mais sentido numa alusão ao melodrama do que num melodrama autônomo.
Pode-se, como crítico, tentar apresentar boa vontade em relação à própria existência do projeto. Afinal, são raros os filmes cubanos, e raríssimos aqueles dirigidos por uma mulher. Além disso, trata-se do primeiro longa-metragem da diretora e de toda a equipe, que podem melhorar em projetos futuros. Mas também seria uma falácia recair na condescendência: méritos de representatividade e méritos cinematográficos são duas coisas muito diferentes.
Filme visto no 44º Festival de Cinema de Gramado, em agosto de 2016.