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    Segredos Oficiais
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Segredos Oficiais

    Uma heroína sem capa

    por Barbara Demerov

    O que é ser heroico nos dias de hoje? Pensando fora da caixa que armazena diversos filmes de heróis que salvam o mundo de ameaças com potencial destrutivo, há uma outra categoria: a de heróis comuns, que não usam capas e não possuem superpoderes. Este é o caso de Katharine Gun, personagem real que Keira Knightley interpreta em Segredos Oficiais. A ex-tradutora de uma agência de inteligência britânica tentou impedir a guerra do Iraque ao divulgar um e-mail que provava que os EUA e o Reino Unido pressionaram diferentes nações para que votassem a favor da invasão que ocorreu em 2003.

    O filme de Gavin Hood salienta bem a pressão interna que a protagonista sentiu antes e durante o processo complicado que encarou - assim como a forte repressão do governo britânico após o vazamento do documento, posteriormente divulgado pelo jornal The Observer. Antes mesmo de ler a informação secreta, a protagonista já demonstra grande reprovação às políticas que aconteciam pouco antes da guerra. Por ter acesso a tantas informações, ela grita com a televisão ao ouvir representantes proferindo mentiras e discute com o marido sobre o assunto. A personagem que Keira interpreta é extremamente bem delineada em sua integridade e opinião, o que faz com que todas as suas atitudes sejam compreendidas.

    Além de abordar bem a concepção de Gun, Segredos Oficiais também abraça a perspectiva de filmes como Spotlight e Todos os Homens do Presidente ao inserir inúmeras cenas que apresentam a dinâmica do jornal The Observer, assim como os questionamentos dos próprios jornalistas. "Essa história tão provocativa e perigosa deve ser publicada, afinal?", "Qual é a fonte?" e "Estamos sendo enganados?" são algumas das perguntas feitas pelos profissionais, enquanto um deles, Martin Bright (Matt Smith), nunca se recusa a mergulhar dentro deste desafio. Elizabeth e Martin formam os elos mais fortes da narrativa por elucidarem as motivações de cada lado: o lado de quem denunciou a fim de informar o povo e o lado de quem sabe que possui o dever de informar, e que o jornalismo em sua raiz também possui a forma de denúncia.

    Ao dividir bem os ângulos da mesma história, o longa consegue ser fluido sem se tornar didático ou antiquado demais. Os dramas - tanto da protagonista quanto de seu marido, dos jornalistas e dos advogados que a defendem - são trabalhados apropriadamente enquanto ficção, o que o impede de se tornar apenas uma transcrição fiel de um episódio real que impactou a sociedade. Como cinema, Segredos Oficiais funciona principalmente por aproveitar seu elenco de forma a interligar cada situação e obstáculo pelo qual todos passam, como se a narrativa fosse um grande mosaico de informações e reações brutais. Como obra que aborda fatos, este é um retrato estarrecedor de como a política realmente é ministrada por quem tem a palavra final.

    Passeando por temas como imigração, pressões indiretas do governo e a infindável questão de "patriotismo vs traição", além de princípios que se mantém intactos mesmo às adversidades, Segredos Oficiais entra no patamar de obras significativas que evidenciam que certos atos de altruísmo e grandeza tornam-se ainda mais extraordinários quando se originam de um indivíduo. Katharine Gun pouco pensou em si quando revelou o documento à imprensa. Ela representou o povo no sentido mais sincero da palavra e foi julgada por isso. Mas sua história é um lembrete de que, enquanto houver vontade de se fazer justiça, ela existirá.

    Filme visto durante a 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2019.

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