Crônica de uma morte anunciada
por Bruno CarmeloEm janeiro de 2015, a mídia repercutiu a notícia de um raro brasileiro executado após receber a pena de morte por tráfico de drogas. Marco Archer, o Curumim, não estava no Brasil, onde esta penalidade não existe, e sim na Indonésia, onde tentou entrar com 13,4kg de cocaína escondidos em uma asa-delta. Durante os onze anos de permanência numa prisão de segurança máxima na Ásia, entrou em contato com o diretor Marcos Prado e pediu que fizesse um filme sobre ele. Curumim ofereceu muitas horas de vídeo que ele mesmo gravou, no cárcere.
O retrato dessa história poderia ser moralmente e cinematograficamente tendencioso, por tocar em temas tabus como a pena de morte, os direitos humanos e o tráfico de drogas. Mas o cineasta, felizmente, toma algumas precauções essenciais. A primeira delas é eliminar, logo no início do documentário, a dúvida se o personagem deveria estar na prisão ou não, com esta pena ou não. Marco Archer abre a história assumindo que, de fato, entrou no país com a droga e foi preso após se refugiar no país. Ponto final. O que interessa ao filme não são as circunstâncias da prisão, mas o que vem antes e depois dela, ou seja, a trajetória do garoto rico, e sua vida no presídio.
Outra precaução encontra-se em equilibrar o discurso emitido pelo próprio condenado à morte. Nas imagens gravadas por Archer, é normal que valorizasse a sua versão dos fatos, que se transformasse em vítima ou mártir. Mas Curumim atenua o partidarismo do discurso: quando o protagonista afirma estar injustamente encarcerado com “bandidos perigosíssimos”, a montagem relembra que ele está ao lado de muitas pessoas com penas e crimes semelhantes aos seus. Quando faz graça, imitando Michael Jackson para demonstrar sua tranquilidade apesar da sentença, o filme oferece depoimentos de colegas de cárcere e cartas pessoais, lembrando que ele era uma pessoa triste, com possíveis distúrbios psicológicos.
O maior mérito deste projeto é não oferecer um ponto de vista único sobre o retratado. Vemos um homem ora sério e bem articulado, ora instável e eufórico, um sujeito que conseguiu ao mesmo tempo ser um “filho de família rica do Rio de Janeiro”, sem nunca ter um emprego fixo, e um traficante experiente na Europa e nos Estados Unidos, uma figura às vezes narcisista e manipuladora, às vezes solitária e desprovida de cuidados em relação à sua imagem. Todas essas vertentes coabitam no complexo retrato traçado por Marcos Prado, e costurado por uma montagem capaz de transmitir humanismo sem condescendência.
Apoiando-se em farto material de arquivo, e transparecendo uma excelente pesquisa de campo, Curumim faz questão de evidenciar sua opinião política. O filme não julga Marco Archer, positiva ou negativamente, mas mostra-se contrário à pena de morte, equiparada à prática da tortura, e denuncia com provas e relatos a corrupção no sistema carcerário da Indonésia, comparado ao brasileiro. O que está em julgamento, para o documentário, não é uma pessoa, e sim o sistema em que ela se insere.
É sintomático que a família do protagonista não esteja presente em imagens, ao mesmo tempo que amigos entrevistados buscam compreender porque ele teria cometido um crime tão arriscado. Mas o diretor nunca faz essas perguntas: pouco importa por que ele se envolveu no crime, quantos anos de pena mereceria. O filme se foca em questões mais importantes, como a pressão psicológica sobre um homem preso durante onze anos, sabendo que será fuzilado a qualquer momento. Deixem os dados para os tribunais e noticiários: o que importa à arte é o ser humano.
Filme visto na 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2016.