Quando se fala em filmes com escatologia, contendo sangue e vísceras voando para todos os lados, é bem fácil pendermos para o pensamento de que tais características evidenciam um filme de terror. Mas, psicologicamente falando, isso também reflete (e muito) a natureza dramática da existência do ser humano, se chocando com a tendência de muitas pessoas em causar danos a outros ou a si mesmo. Raw, roteirizado e dirigido pela francesa Julia Docurnau, ganhou certa fama em festivais pelo mundo a fora por ser confundido com um simples filme de terror – mas é uma obra disposta a ser muito mais do que isso.
Tendo em mão o tema do canibalismo, Docurnau tenta nos passar, de forma muito subjetiva (como toda boa arte também pode ser), uma história repleta de sensações e emoções que o ser humano costuma experimentar, mas tem vergonha de assumir – poderíamos facilmente trocar o canibalismo por “vicio” ou “compulsão” – ou até mesmo “drogas”, dependendo do caso. Ou “imposições”, já que muita coisa que vivemos hoje em dia é imposta a nós, como um sistema de ensino falho em avaliar a capacidade real de alunos – ou uma forma de inferiorizar ou superestimar algumas profissões – e falo de todos esses exemplos porque são abordados em Raw.
A história acompanha a jovem Justine (Marillier), caloura em uma universidade de veterinária, onde sua irmã Alexia (Rumpf) já está cursando o segundo ano do mesmo curso – que vem de família, pois seus pais (Preiss e Lucas) já são veterinários. Vegetariana (assim como seus pais) e insegura da vida no campus, Justine logo começa a ter problemas ao ingerir (forçadamente) carne animal durante um trote promovido pelos veteranos do curso. Começando por estranhas alergias na pele, logo a moça começará a demonstrar uma estranha compulsão por comer carne – e não só animal.
Raw, na verdade, é um grande estudo de comportamentos humanos e de personagens, em especial, é claro, a própria Justine e sua irmã – que, através de uma estranha relação, mostram suas diferenças em encarar o mundo e a vida – Alexia, vivida de forma áspera e fria por uma atuação misteriosa de Ella Rumpf, tenta passar para irmã como mudou sua forma de pensar e agir depois de ter saído de casa – Justine, vivida com uma timidez e olhar de curiosidade quase ingênuo pela eficiente Garance Marillier, expressa muito bem o choque ao ver o mundo da faculdade – com suas festas “clandestinas”, trotes (quase) violentos, imposições e implicações de professores e de bullying, de certa forma, principalmente quando os “sintomas” do canibalismo vão surgindo – que, ainda assim, não deixam o filme tão nojento como muitos estavam dizendo – passando longe de ser grotesco como Holocausto Canibal, por exemplo.
O roteiro também aborda a questão da sexualidade da jovem – virgem, ela tem em seu companheiro de quarto, Adrien (Oufella), que é homossexual, sua primeira atração sexual – é curiosa a maneira que a diretora aborda a relação (inicial) de amizade dos dois – aliás, com o uso de poucos diálogos nesses momentos, ela consegue causar uma estranha ligação entre eles, que se sentem, obviamente, um tanto deslocados no ambiente em que vivem – culminando, no talvez mais memorável momento do filme, que é justamente a cena de sexo entre os dois.
Com uma fotográfica bonita e inteligente, que utiliza tons azuis para momentos frios e tons fortes (com vermelho ou amarelo) para ressaltar perigo ou descoberta, lindamente usada na estranha (para não dizer quase bizarra) cena onde Justine descobre sua compulsão por carne humana, de fato – também há o uso de humor, em certas partes, sendo interessante para demonstrar como os temas que citei no inicio são vistos com deboche por parte da sociedade. O filme se beneficia também de um trabalho de som muito bom, evitando os habituais sustos fáceis com ruídos ou barulhos do nada – justamente por não se equiparar a filmes de terror convencionais.
Pecando apenas por mostrar a relação das duas irmãs com os pais de uma forma um tanto superficial – mesmo que tenha algum motivo para isso – o filme funciona como um retrato metafórico muito eficiente de certas atitudes do ser humano que nem sequer são notadas como errôneas – mesmo que a diretora Julia Docurnau não seja (ainda) um Lars Von Trier, capaz de inserir um clima tétrico e poético ao mesmo tempo, como no polêmico Anticristo – que também é um exemplar de terror usado para ressaltar algum drama mundano.
Enfim, o canibalismo é apenas o pano de fundo para exemplificar como o ser humano vive devorando tudo e todos com suas convenções, maldade infundada e a falta de humildade em reconhecer que está errado em certas atitudes ou pensamentos e, muitas vezes, deixando isso passar de geração para geração.