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    Cartas da Guerra
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Cartas da Guerra

    Fragmentos de um discurso amoroso

    por Bruno Carmelo

    África, início da década de 1970. O médico português António (Miguel Nunes) se desloca junto ao exército de seu país pelo território de Angola, durante as guerras que determinaram a liberdade das colônias em relação ao invasor europeu. Distante de sua esposa grávida, ele envia cartas frequentes à amada, descrevendo a rotina no campo de batalha, o tédio da espera, o horror das mortes, as cores, cheiros e texturas do local. Sobretudo, confessa seu amor, paixão, saudade e desejo sexual pela futura mãe de seu filho. Cartas da Guerra, dirigido por Ivo M. Ferreira, apoia-se inteiramente neste material verídico, com longos trechos narrados em off.

    O material poderia ser maçante para um longa-metragem, no entanto António Lobo Antunes foi um escritor talentoso, com real astúcia no manejo das palavras. A prosa belíssima transparece a preocupação estética e o anseio de publicação posterior aos combates – o escritor confessa ter escrito e reescrito o texto várias vezes. Curiosamente, a declaração apaixonada de um homem é lida na maior parte do tempo pela voz feminina que recebe as cartas, rompendo com os referenciais de gênero e criando uma narrativa amorosa universal, como se as palavras encontrassem eco na voz da narradora.

    Outro elemento de distanciamento ocorre na dissociação entre som e imagem: enquanto a voz de Margarida Vila-Nova (excelente narradora, reforçando o significado das palavras sem exagerá-lo) descreve sensações e sentimentos, a imagem retrata ações cotidianas no quartel e no consultório médico. O som não apresenta o mesmo conteúdo da imagem, de modo que uma das premissas do realismo fotográfico se dilui: estamos no terreno da poesia, da metáfora e do sonho - um caminho raramente adotado para os filmes de guerra. O projeto não possui a pretensão de ser historicamente exaustivo, limitando os conflitos ao ponto de vista de um personagem distante dos campos de batalha.

    O rompimento com o real é completado pela fotografia em preto e branco muito bem cuidado, aplicada a movimentos de câmera constantes porém discretos, reforçando os contrastes de pele (os portugueses brancos versus os angolanos negros) e retirando da paisagem sua idealização de beleza. Ferreira evita sabiamente o espetáculo da guerra: nos raros instantes em que o sangue aparece, as cenas curtas são entrecortadas por momentos de calmaria. O cineasta está mais preocupado com a beleza das palavras e a plasticidade das barricadas do que com a evolução temporal dos confrontos.

    Por um lado, o resultado se revela agradável aos olhos, além de criativo dentro do subgênero. Cartas da Guerra jamais transforma a sua beleza em fetiche, nem a coloca acima do teor humano: os enquadramentos e luzes são concebidos para se ajustarem aos retratos de colonizadores e colonizados. Por outro lado, tamanho desprendimento dos fatos faz com que os eventos soem, em alguns momentos, genéricos. Perdem-se as especificidades deste conflito, que adota características semelhantes a de tantos outros ocorridos ao longo do século XX. A situação econômica de Portugal e dos países africanos, a questão étnica, os diferentes movimentos em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau se perdem. O filme trabalha uma noção abstrata de guerra e de distância, aprofundando a sua magnífica poesia à medida que se afasta da historicidade do confronto.

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