A libertinagem no século XXI
por Bruno CarmeloPara adaptar um texto sulfuroso como o do Marquês de Sade, não tem sentido buscar meios-termos: é melhor ser o mais direto possível. Esse parece ter sido o ponto de partida do grupo Satyros, que levou a peça aos palcos e agora preparou a adaptação cinematográfica. A primeira cena resume o estranhamento deste universo: num plano-sequência vertiginoso, descobrimos um galpão com aparelhos metálicos, enquanto homens e mulheres se masturbam. Os objetos, utilizados para o desejo sexual, se fundem aos corpos. Está lançada a ideia do corpo-máquina, do mundo no qual todas as pessoas e coisas ao redor servem ao gozo individual.
Os espectadores incomodados com nudez devem se chocar com a quantidade de vaginas e pênis eretos. Ora, num projeto tendo o sexo como tema central, seria hipócrita esconder os corpos – este certamente não é Cinquenta Tons de Cinza. Muito além da nudez e do sexo, o que realmente incomoda é a mise en scène do estupro. No século XVIII, quando o texto apareceu, a questão da autonomia da mulher tinha outro valor. Hoje, a noção da educação forçada das mulheres pela via do estupro deixa um gosto amargo. Por mais que a dócil Eugenie (Bel Friosi) se afeiçoe à dinâmica hedonista dos demais personagens, sua introdução a este mundo passa pelo abuso, pelo prazer de apenas uma das partes envolvidas.
Talvez falte ao projeto adaptar o ponto de vista aos tempos contemporâneos. Os diretores Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez efetuam um ótimo trabalho na construção metafórica desta alcova, apostando em cenas dinâmicas de orgias e uma belíssima cena final dentro de um carro. Celulares, rodovias e brinquedos eróticos indicam que estamos no tempo presente, mas seria importante refletir sobre o modo como estes temas evoluíram. Diz-se dos clássicos que são atemporais, porém a sociedade onde se inserem não para de se transformar, e a apreciação das obras acompanha essas mudanças. O que representa o hedonismo de Sade no século XXI das selfies, nudes, do torture porn, do revenge porn, do sexo virtual, do neoconservadorismo das instituições?
As perucas antigas, a maquiagem branca e os diálogos preservam a aura de teatralidade e nobreza literária. O elenco evita incorporar o vocabulário à cadência contemporânea, investindo no tom declamado e excessivamente articulado, algo reforçado pelo uso de câmeras próximas e trabalho de som bastante claro nos diálogos. A Filosofia na Alcova brinca com a fricção entre a aparência de naturalidade (a representação não simulada dos corpos) e a artificialidade dos cenários, figurinos e conflitos. Se as práticas de Dolmancé (Henrique Mello) e Juliette (Stephane Sousa) constituíam um microcosmo isolado no texto original, elas se tornam ainda descoladas da sociedade séculos mais tarde.
A adaptação cinematográfica possui como triunfo seu discurso politizado contra o conservadorismo da religião. O roteiro ataca dogmas cristãos como a obrigação da monogamia, a submissão da mulher ao homem e a impressão de benevolência atribuída ao divino. Em registro radicalmente oposto, vende o egoísmo como “essência humana” e o desejo sexual como único princípio organizador de uma sociedade utópica, o que implica a permissão ao incesto, à bestialidade, à escatologia, aos assassinatos. Ao invés do amor, o princípio do prazer. O filme acompanha cada etapa de um manifesto político em torno dessas ideias destrutivas e extremas, vendidas como metáfora contrária à moral vigente.
Talvez a transformação de Eugenie seja veloz demais, e alguns personagens, como André (Felipe Moretti), são subaproveitados. Mas o grupo Satyros consegue encontrar uma linguagem cinematográfica adequada ao material, trazendo uma discussão sempre importante sobre as possibilidades de configuração social e a autonomia do indivíduo.