Não se nasce mulher. Torna-se
por Taiani MendesVestindo uniforme amarelo e vermelho, Greta Driscoll (Bethany Whitmore) surge em cena sentada sozinha num banco durante o recreio. É seu primeiro dia na nova escola e ela é a estranha. A isolada no meio do enquadramento perfeito. Nas mãos origami, no olhar desesperança, ao fundo, ao lado e às vezes até mesmo à sua frente, estudantes fazem o que estão acostumados a fazer. Interagir com a novata não está na lista da maioria, mas existem exceções. A principal delas é Elliott (Harrison Feldman). Entusiasmado, carente e tagarela, ele, que tem awesome como palavra favorita, parece desesperado por uma nova amizade. E consegue. Mostra-se aí, já, a passividade de Greta, que ao longo do filme vai se colocando numa série de situações por pura falta de reação. Sabe o “quem cala, consente”? Caladona, insegura e atraída pela floresta no fundo do seu quintal, ela vive com os pais e a irmã mais velha. Não tem bicho de estimação, cuida com zelo da caixinha de música presenteada pela mãe, seu bem mais precioso. Preocupados com o isolamento da filha, os pais decidem organizar uma grande festa de 15 anos para a garota e convidam, sem ela ter conhecimento, todos os alunos da escola. Pressionada a aceitar coisas que jamais quis, humilhada em público e sob grande estresse, ela não aguenta, implode. Cai no sono, como aponta o título original – Girl Asleep, garota dormindo –, e adentramos via movimentos lentos de câmera o universo de seu mundo particular, a caixa de Greta.
Primeiro filme de Rosemary Myers, O Sonho de Greta leva ao pé da letra a descrição que Elliott faz da celebração dos 15 anos: é a aurora de uma nova era. Despreparada, como todos os adolescentes, a protagonista deve vivenciar uma brutal ruptura. No caminho de descoberta da sua própria voz, vontade e identidade, ela é guiada pelo desejo de recuperar sua maior posse e não pela plena consciência do processo de transformação fundamental para o crescimento. Greta precisa se soltar, se libertar, mas para tanto necessita seguir estritamente as orientações de Huldra (Tilda Cobham-Hervey), a mulher indomável, e não morrer no mato. Entre os inimigos a serem derrotados estão a falta de confiança; o ciumento, piadista sem graça e inofensivo pai, que insiste em impedir o seu avanço assumindo diferentes facetas; a mãe de gelo que quer transformá-la num clone; o cantor francês que é puro sexo e desrespeito; e as falsas amigas do colégio, meninas “avançadas”, praticantes de bullying.
A personalidade extremamente maleável de Greta e o fundo infinito da floresta subjetiva se opõem ao rigor estético das imagens, contidas na ultrapassada proporção de tela 4:3, bem próxima do formato quadrado impulsionado pelo Instagram. Falando no aplicativo, os planos da primeira metade do filme são todos tão deslumbrantes que cada frame pode ser encarado como uma fotografia bastante acima da média. Wes Anderson é claramente a grande referência da direção e sua influência é notada sem esforço na direção de arte, figurino, iluminação, composição e montagem, cheia de intervenções nada sutis, que usa partes do cenário para indicar passagens temporais. O ponto fora da curva é o elenco, que não se mostra tão alinhado quanto os das produções do excêntrico indie americano. Bethany exprime com exatidão a perdição da protagonista, inclusive nos mais longos closes, mas os coadjuvantes são irregulares, cada um num tom diferente. O exagero caricatural não está distante das “meninas malvadas” e enquanto mamãe Janet (Amber McMahon) e papai Conrad (Matthew Whittet) seguram as características bizarras de seus personagens até o fim, Harrison Feldman, intérprete de Elliott, não exibe a mesma destreza na representação da esquisitice setentista. O absurdo de algumas situações não diverte no sentido de gerar risadas, porém gera empatia.
Coming of age do tipo raro, pois não tem o famoso “primeiro amor” com eixo, O Sonho de Greta leva a jovem a dar adeus à infância, expor suas opiniões de maneira firme e colocar os próprios desejos na frente das demandas dos outros. A jornada onírica, que chega a largar o público perdido como a garota no completo breu, vai sendo decodificada e termina não deixando dúvida nenhuma sobre os significados dos símbolos. O momento em que a pequena Greta aparece e faz um emocionante apelo é a prova final da falta de segurança da diretora e do roteirista Matthew Whittet nas abstrações apresentadas. Ainda assim, no caso é bem mais perdoável errar pelo exagero de explicação do que pelo excesso de hermetismo, que poderia complicar a apreciação por parte do público da faixa etária da protagonista. Mais útil que o melhor baile de debutante, O Sonho de Greta indica caminhos para o triunfo da vontade própria. Onde vivem os monstros? Dentro.