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    Do realismo à fantasia

    por Bruno Carmelo

    Desde a primeira cena, o drama impressiona pela câmera colada ao rosto dos personagens: num bar, a cantora Félicité (Véronique Beya Mputu) se apresenta, enquanto os colegas tocam e dezenas de clientes assistem à performance. O enquadramento próximo do quadrado serve para encher o plano com o rosto de cada um, destacando o tom de pele, a intensidade da fala, a movimentação, enfim, o frenesi de uma noite animada na República Democrática do Congo. A câmera continua, durante dois terços da trama, acompanhando os conflitos da imperturbável Félicité.

    Os problemas da protagonista são de ordem financeira, principalmente. Com o filho acidentado no hospital, precisa de dinheiro para pagar a cirurgia. A pragmática artista arregaça as mangas e vai bater em todas as portas conhecidas – e mesmo algumas desconhecidas – na intenção de juntar a soma necessária. Durante a primeira parte do filme, o diretor Alain Gomis fornece um excelente drama social, filmando de modo orgânico as ruas de Kinshasa, além do espírito comunitário e da miséria mo país. Sem se transformar em filme-denúncia, o projeto consegue chamar a atenção para desigualdades e abusos, posicionando-se a favor dos desfavorecidos.

    Parte do sucesso desta empreitada política encontra-se na presença magnética de Véronique Beya Mputu em cena. Sem sorrisos nem lágrimas, ela transmite a obstinação e o cansaço da personagem em sua peregrinação financeira, e na humilhação que está disposta a aceitar para cuidar do filho. As cenas de apresentação no bar são magníficas, por mostrarem uma cantora renovada, um espírito livre que Félicité não manifesta no dia a dia. Ao mesmo tempo, os conflitos pessoais são transmitidos às canções de maneira verossímil e pungente. Ao invés de sonhar com grandes posses e com a fuga da cidade, esta mulher tem desejos imediatos: a cirurgia do filho e o conserto da geladeira quebrada. A necessidade de sobrevivência retira dos personagens a possibilidade de sonhar com o futuro.

    Ocasionalmente, Gomis acena para alguns recursos poéticos, beirando o fantástico: a cantora caminha numa floresta de madrugada, enquanto a imagem experimenta sobreposições e borrões visuais, como no efeito fotográfico de um diafragma aberto demais. Estes elementos servem para suavizar o realismo da direção e atribuir transcendência à personagem, comprovando que o olhar humano diante da adversidade não precisa se traduzir em miserabilismo. No entanto, à medida que Félicité começa a se aproximar de Tabu (Papi Mpaka), poeta improvisado e cliente do bar, a estética se abre gradual e irreversivelmente à fantasia.

    É neste momento que o projeto perde um pouco de sua força. O terço final se arrasta, a câmera perde a protagonista de vista pela primeira vez para se focar no alcoolismo e apetite sexual de Tabu, enquanto as experiências com texturas, cores e com a exposição da imagem crescem até fagocitar o naturalismo. Félicité ameaça se transformar em outro filme, igualmente belo, mas pouco compatível com o anterior. Apesar dessa discrepância, o resultado é um belo estudo de personagem, com não-atores brilhantemente dirigidos e um olhar complexo à realidade das grandes cidades africanas.

    Filme visto no 67º Festival de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2017.

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