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    O Filho de Joseph
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    O Filho de Joseph

    A ode e a profanação de Eugène Green

    por Rodrigo Torres

    Eugène Green foi perguntado, em entrevista recente, o que pensa de ser taxado de formalista. Coube a ele também ser tachativo: "Arte é forma, senão, não é arte." Então o cineasta rebate que há uma tendência na indústria cinematográfica contemporânea (especialmente da França em que é radicado) de articular críticas sociais sem complexidade de ideias e em detrimento de forma, linguagem e estilo. Não à toa, esta percepção é a base da cinematografia de um dos autores mais cultuados da atualidade, cuja obra encontra a iniciação mais palatável em O Filho de Joseph.

    Para efeito de comparação, e apreciação de como o realizador francoamericano processa seu entendimento de sétima arte (um bom modo de vê-lo é como conjunção do que há de mais valioso em todas as outras), vale lembrar a sequência de abertura de sua obra-prima, A Ponte das Artes. Herdeiro de Robert Bresson, Eugène Green estabelece de imediato o seu cinema antinaturalista, aposta na mecanicidade dos gestos, das expressões, no tom declamatório da fala, chamando atenção do público para o texto e subtexto de seu roteiro. Em consonância com a pintura na parede, a vitrola sobre a escrivaninha, a breve discussão matinal de um jovem casal inclui frustrações acadêmicas, discussões filosóficas, existenciais, e uma deliciosa sátira à intelectualidade francesa. "Pessoalmente, penso que posso viver sem um mestrado sobre o transcendentalismo materialista de André Breton", diz o protagonista Pascal (Adrien Michaux), com despeito pelo seu futuro e devolvendo na mesma moeda o cinismo da academia.

    Na primeira imagem de O Filho de Joseph, dois adolescentes aprontam um ato extremo de rebeldia: espetam um rato gordo preso numa gaiola. Pouco depois, um exausto Jean convida o protagonista para ajudá-lo em sua "empresa" de doação de esperma. Estipulado de tal modo jocoso o universo dos jovens, Eugène Green explicita o motivo da revolta de um deles, Vincent (Victor Ezenfis): ele deseja conhecer o pai, e a mãe diz que esse pai não existe. Dentro de um quarto com um Caravaggio na parede, a sequência transcorre numa lógica visual muito semelhante à da abertura supracitada de A Ponte das Artes — sendo a diferença fundamental a popularidade do protesto de Vincent, e da abordagem aqui imposta pelo cineasta.

    O Filho de Joseph, pois, se desenvolve como uma agradabilíssima comédia com a marca autoral de seu diretor e roteirista. As bases do cinema de Green estão todas lá: a frontalidade dos atores diante da câmera, o posicionamento simétrico deles no meio do quadro, a manifestação teatral dos diálogos e dos corpos, a ode às artes clássicas, a religiosidade, a divisão do filme em partes. Tudo, porém, com um alcance bem amplo. Do mesmo modo que a distinção de suas forma, estilo e linguagem segue extirpando qualquer lastro de passividade do espectador, a experiência se prova totalmente compensatória pela riqueza de uma narrativa ao mesmo tempo tão requintada quanto fluida, leve, engraçada.

    Melhor ainda é perceber a doce profanação de O Filho de Joseph. Na tentativa de Vincent em casar a mãe Marie (Natacha Régnier) com o tio Joseph (Fabrizio Rongione) — sim, Maria e José — e na transformação da busca do jovem por um pai numa verdadeira peregrinação por passagens da Bíblia, um sacrilégio ao Livro Sagrado. Na gozação de temas que costuma (e aqui também visa a) exaltar, Green profana ao próprio cinema — como de praxe e numa comprovação de máxima formulada por ele mesmo: a sátira, capaz de diluir a raiva sobre determinado assunto e vertê-la em amor, serve bem como veículo de afeto.

    Além de extrair o melhor da farsa dos consagrados Mathieu Amalric e Maria de Medeiros para traçar paralelos com a alta sociedade francesa (e, o mais importante, fazer humor de alto nível), Eugène Green torna O Filho de Joseph um de seus filmes mais acessíveis em termos de gerar empatia pelo (neo)barroco, dada a veiculação de sua mensagem em momentos de universalidade e singeleza entre pai e filho. Portanto, um respaldo e tanto a quem critica o cinema atual justamente por sua incapacidade de aliar sofisticação artística à transmissão da palavra.

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