Quero ser 007
por Francisco RussoEra uma vez uma personagem antenada com os sombrios tempos atuais: hacker profissional, de visual soturno e semblante fechado, sem dó nem piedade em recorrer à violência para coibir abusos cometidos contra si, especialmente por homens que se recusassem a aceitar que não é não. Lisbeth Salander marcou época já na literatura, alçada ao posto de estrela maior da trilogia Millennium, e rapidamente ganhou não uma, mas duas reinvenções no cinema, ambas bem recebidas por público e crítica. Tamanho sucesso, é claro, atiçou a ganância: com o autor Stieg Larsson morto, vítima de um infarto fulminante, não haveria mais novas histórias com a anti-heroína favorita do público. A saída? Contratar alguém para seguir com a missão.
Assim nasce A Garota na Teia de Aranha, primeiro dos dois livros escritos por David Lagercrantz, que resolve enveredar por um caminho até então pouco explorado: o passado de Lisbeth. Assim como na literatura, no cinema a decisão também foi mudar tudo: não por qualquer motivo trágico, é bom ressaltar, mas pela simples decisão em seguir adiante com uma marca (e uma personagem) forte sem ter que gastar tanto com salários. Desta forma, o promissor Fede Alvarez foi convocado para a direção, escolhendo novos protagonistas. Mas, era mesmo necessário?
Ao comparar a Lisbeth Salander de Claire Foy com as antecessoras interpretadas por Noomi Rapace e Rooney Mara, é nítido que a inspiração maior vem do longa dirigido por David Fincher: o visual de ambas é bem parecido, por mais que Mara tenha um olhar mais desesperançoso, sem vida. Apesar de manter o conhecido tom sisudo, Foy entrega uma personagem que também se emociona, em parte por remexer em feridas do passado mas também para explorar seus expressivos e reluzentes olhos azuis. Ou seja, A Garota na Teia de Aranha entrega uma terceira vertente de Lisbeth Salander, com aspectos conhecidos do público mas também algumas novidades - e Foy é competente na pele da personagem, é bom ressaltar desde já.
Tal característica é sem dúvida o grande atrativo deste novo longa-metragem, que assume de vez a proposta comercial de emplacar sua personagem principal em uma lucrativa franquia. Travestida como "a garota que machuca homens que agridem mulheres", Lisbeth assume ares de vigilante na sempre gélida Estocolmo, mais uma vez essencial para a linguagem visual empregada - basta reparar no constraste da neve com o figurino preto da protagonista, sempre ressaltado na fotografia. Mais ainda: Lisbeth agora é conhecida, mencionada no rádio e na TV, graças às populares matérias publicadas na revista Millennium - o que, paradoxalmente, não a impede de se manter no underground, característica básica da personagem. Soma-se a isso o fato de que o sempre parceiro Mikael Blomkvist foi rejuvenescido, agora interpretado pelo galã Sverrir Gudnason - decisão esta que, displicentemente, insinua uma suposta tensão sexual entre os dois, ainda mais diante do passado com Lisbeth.
Por mais que cada uma destas mudanças seja bem questionável, ainda mais por acontecerem muito de olho no potencial mercadológico futuro, elas seriam aceitáveis se a história apresentada fosse ao menos envolvente. Após um início inusitado, mostrando Lisbeth ainda criança fugindo do pai pedófilo e deixando a irmã para trás, A Garota na Teia de Aranha aos poucos constrói uma narrativa burocrática e mal fundamentada, onde cada personagem e sua respectiva subtrama apresenta falhas graves de consistência. Pouco a pouco tais desleixos comprometem o todo, especialmente quando é preciso aceitar que toda a verdade sobre um grupo tão perigoso quanto os Aranhas seja revelado a um desconhecido tão facilmente, ou que uma criança diga que "precisa esquecer o pai" poucas horas sua morte diante de seus olhos - em um diálogo sofrível, é bom ressaltar.
Soma-se a isto problemas envolvendo certos coadjuvantes, quase desnecessários nesta história mas habilmente plantados de olho em futuras continuações. É o caso do agente Needham (Lakeith Stanfield, intencionalmente arrogante), que perambula pelo longa-metragem sem muito objetivo prático, e até mesmo de Mikael, cuja participação é mínima dentro da narrativa - sua presença é muito mais afetiva, de olho nos fãs.
Diante de tantos problemas estruturais, o que sustenta A Garota na Teia de Aranha é a atuação de Claire Foy e alguns poucos momentos em que o diretor Fede Alvarez é capaz de mostrar seu talento ao criar tensão, como na boa sequência em que Lisbeth foge sob o efeito de drogas, com a câmera trêmula remetendo a sua desorientação, e na angustiante cena em que é embalada a vácuo. Ainda assim, a necessidade em se ater ao didatismo de uma história problemática atrapalha demais o trabalho do diretor.
Idealizado como produto, A Garota na Teia de Aranha cumpre sua função de seguir adiante com a saga de Lisbeth Salander, seja literária ou cinematográfica, sem no entanto apresentar a mesma força do original. Com uma personagem agora pasteurizada, de forma a se enquadrar em estereótipos necessários para a criação de uma franquia, Lisbeth ganha passado, equipe própria e até aliados que permitem uma continuidade talvez eterna. Algo parecido com um certo espião britânico, que povoa livros e filmes há mais de 50 anos com bastante sucesso - não por acaso, a abertura de A Garota na Teia de Aranha segue a mesma proposta estética dos filmes de James Bond, com uma canção-tema envolta em simbolismos relacionados ao filme e sua protagonista. A fórmula, como se pode ver, foi seguida à risca.