A grande beleza da vida
por João Vítor FigueiraTolos não são os que sonham, mas os que se deixam levar pelo racionalismo vazio que não nos salvará do apocalipse de nós mesmos em Abaixo a Gravidade, mais recente longa-metragem do diretor e roteirista baiano Edgard Navarro. O realizador, que agora se define um “cinemeiro” e não um cineasta para evitar a pompa e circunstância associada à nomenclatura, faz mais um exercício de cinema de invenção neste longa-metragem que evoca de Fellini à Jorge Amado com ecos de filme marginal e um humor que passa longe do cinismo.
Logo no título, este projeto estabelece uma conexão com Superoutro (1989), trabalho seminal de Navarro que propõe uma intensa corporalidade do sujeito. O curta-metragem usa cenas com masturbação, nudez e fezes para tratar da dimensão carnal e fisiológica da existência humana e como as pulsões mais básicas coexistem e se entrelaçam com o desejo de transcender a materialidade, de experimentar uma vida mais real. Se "abaixo a gravidade" é o grito de guerra do personagem principal de Superoutro antes de pular do Elevador Lacerda, em Salvador, neste longa-metragem a frase é o lema de vida de Seu Bené, protagonista interpretado por Everaldo Pontes, mesmo que ele jamais chegue a verbalizar isso.
De início, somos apresentados a Bené levando uma rotina de tranquilidade em uma pequena cidade da Chapada Diamantina. Explorador da espiritualidade e definido por sua bondade, o idoso dedica seu tempo ao cultivo de alimentos orgânicos, meditação e trabalhos espirituais. A chegada de Letícia, uma jovem hippie grávida (que faz o protagonista reviver seus tempos de parteiro) interpretada por Rita Carelli, desperta no personagem de Pontes um novo alvorecer do desejo. Após o nascimento do bebê, ela deixa o vilarejo e parte para Salvador, cidade-natal de Bené de onde ele se exilou há décadas. Tais circunstâncias fazem o homem deixar sua zona de conforto em uma caminhada de retorno às suas origens. Durante a jornada, Bené terá de lidar com dois imperativos da natureza: a descoberta de uma doença grave e a proximidade de um meteoro (referência explícita a Melancolia) que passará perto da atmosfera da Terra no espaço aéreo da capital baiana.
A urbe contraditória, exuberante, perigosa, colorida e viva de Salvador é filmada por carinho e onirismo por Navarro, quase como se o diretor propusesse, sem querer, um contraponto ao ascetismo dos planos gerais da cidade vistos na novela Segundo Sol. Vagando pela cidade ao lado de conhecidos, Bené tem a chance de colocar em prática sua espiritualidade transcendental que filtra candomblé, catolicismo, budismo e hinduísmo e até mesmo aprender com os mendigos mais incrédulos, como Galego (Ramon Vane, em grande atuação). A associação do ator de voar com a busca da liberdade pode ser batida, mas, mesmo sendo um clichê, a metáfora funciona na presença de outro mendigo, vivido por Fábio Vidal. O personagem coleta do lixo os materiais necessários para construir um par de asas que o fará voar. É na miséria que o desejo de atingir o sublime ganha potência.
O humor e crítica também se fazem presentes em Abaixo a Gravidade de uma maneira aparentemente óbvia, mas bem realizada. O diretor usa a linguagem escrita de forma funcional para alcançar efeitos dos mais diversos. Além das cartelas com dizeres (recurso utilizado em outros filmes de Navarro), o filme constrói quadros que usam tipografias como complemento, como quando Bené vagarosamente caminha diante de uma pichação que diz "ACM nunca mais", quando a câmera enfatiza um adesivo sobre arrebatamento no carro de um motorista cristão, quando uma tomada de outra pichação exibe a mensagem "Exu te ama" na fachada lateral de uma igreja ou quando uma pessoa em situação de rua tem um banner de um empreendimento imobiliário onde se lê "seu sonho de moradia" entre suas tralhas.
Aos poucos, Navarro investe mais e mais pesado no desprendimento do realismo, lança mão de rupturas narrativas sorrentinescas e investe em devaneios visuais e estilísticos. Muitas das divagações visuais revelam as cores escondidas nas nuvens da rotina, como quando um artista de rua se transforma, do nada, em um orixá e ganha os céus. Em outro momento, é a escultura "O Pensador", de Rodin, que voa içada por um helicóptero por cima do Pelourinho sendo observado por populares (referência de A Doce Vida). Outros devaneios não funcionam tão bem. Um exemplo é a transformação de Letícia em uma subversão de si mesma que não é bem explicada pelo roteiro, embora seja nesta fase em que a as ambiguidades de morte e vida, juventude e velhice, carnal e transcendental sejam melhor exploradas no reencontro da mulher com Bené.
Um ponto fraco do filme é o arco dedicado ao personagem de Bertrand Duarte, um sujeito abastado de classe média que também descobre estar doente e tenta expor suas angústias para um psicanalista que não está aberto para suas lamúrias. A figura está no longa-metragem provavelmente para balancear a sabedoria desapegada de Bené, mas seu paralelo com a trama principal do protagonista é frágil. O arco praticamente só serve para interromper o fluxo de acontecimentos relacionados ao enredo principal do filme.
A dignidade com a qual Seu Bené é tratado ao final de sua jornada é mais um acerto do roteiro. O idoso, mesmo doente, não precisou morrer para ver Deus e conhecer a grande beleza da vida. Em Abaixo a Gravidade, mais certas do que as leis da física identificadas por Newton quando a maçã caiu em sua cabeça são as leis do afeto e das possibilidades da experiência humana.
Filme visto na 12ª CineBH - Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte, em agosto de 2018.