O delírio de Aronofsky
por Rodrigo TorresSempre que um novo cineasta desponta em Hollywood com uma proposta mais arrojada e pretensamente complexa, um surto coletivo se apropria da crítica e do público cinéfilo no intuito de alçá-lo ao patamar de autores atestados por anos, décadas de análises sobre sua obra. Darren Aronofsky habita o epicentro dessa discussão desde seu descobrimento em Réquiem para um Sonho, tendo alcançado o auge no excelente O Lutador e uma espécie de consagração no multipremiado Cisne Negro — um bom filme que, por sua vez, evidencia o principal truque do diretor: incorporar alegorias temáticas e visuais em uma narrativa perfeitamente inteligível e de interpretações limitadas. Nesse caso particular, um cinema frio que se basta em decifrar seus códigos e descobrir uma história simples, cuja complexidade reside em sua estrutura, não nas reflexões de caráter existencialista, psicológico ou filosófico propostas pela obra.
Nessa condição de artífice, e dos bons em termos de manipulação da linguagem cinematográfica, Aronofsky é muito feliz na primeira metade de Mãe!. Como um bom pretensioso, o cineasta exige total atenção do público desde a sequência de abertura, em que uma casa deteriorada se restaura como uma peça orgânica, como um ser — dado importante. Em seguida, somos apresentados à protagonista, uma dona de casa cuja devoção ao marido se estende à efetiva restauração da residência dele. A relação íntima de Mãe (Jennifer Lawrence) com o lar é o primeiro grande simbolismo operado por Aronofsky, com a mansão vitoriana no meio do nada com predominância de tons pastéis espelhando o físico e a personalidade da personagem: uma mulher de outro tempo, submissa, que se basta a uma vida isolada, tranquila e sem graça dedicada ao marido. Assim, a casa e a mulher, ambas a serviço do homem, se confundem como uma só coisa.
Ele (Javier Bardem), por sua vez, tem ambições maiores. Escritor em crise criativa, o homem deixa a necessidade de se isolar para produzir em troca da adulação de um fã e o convida para passar a noite. Eis o terrível protótipo do poeta, egocêntrico, e o início do pesadelo de Mãe. Com nítida inspiração na Trilogia do Apartamento de Roman Polanski (especialmente na trama de O Bebê de Rosemary e na estrutura cíclica de O Inquilino), a vida da protagonista segue em um crescente de delírio que não é tão bem-sucedido no campo onírico e do horror psicológico (apenas visualmente), e acerta em cheio quando investe na fina ironia do absurdo contido na situação: quanto maior seu tormento, mais hóspedes indesejados chegam a casa, e cada vez mais invasivos.
Isso se estabelece em menos de uma hora, e de modo envolvente. Até que Darren Aronofsky perde a mão, a história se torna repetitiva, demais, evocando o martírio da protagonista e se transformando em uma experiência insuportável para o espectador. Então, com o mesmo expediente utilizado em Cisne Negro (porém de maneira mais exaustiva e presunçosa), o diretor e roteirista opera o surrealismo visual em prol de um sem número de alegorias religiosas. (E se você não quiser spoilers, retome a leitura após ter visto Mãe!) Os hóspedes indesejados Homem (Ed Harris) e Mulher (Michelle Pfeiffer) são Adão e Eva, e cometem seu próprio pecado original. Seus filhos Caim e Abel são interpretados pelos irmãos na vida real Domhnall e Brian Gleeson. O personagem de Javier Bardem é Deus. E, segundo o próprio Aronofsky, Jennifer Lawrence é... a Mãe Natureza!
A partir daí, Darren Aronofsky compõe um mosaico caótico que confunde, incomoda e (além de uma abordagem que lhe rende comparações precipitadas com Stanley Kubrick e Luis Buñuel) serve apenas como analogia sobre a Bíblia. Quando Ele consegue finalizar seu livro e Herald (Kristen Wiig), representação do Arauto de Deus, anuncia o lançamento da publicação ao povo, uma legião de fãs se dirige para a casa (e para o horror) de Mãe — iniciando-se a metáfora (o alerta?) da destruição do universo pela humanidade, seja com guerras, seja pela exploração do meio ambiente. A mera adivinhação desse emaranhado de símbolos já agrada a muitas pessoas, o que é válido. Para outras, soa como um embuste reforçado pelo desfecho previsível e convencional da trama principal do filme.
Tal polarização de opiniões, por outro lado, rende críticas injustas ao cineasta, como creio ser o caso das acusações de misoginia. A protagonista é de fato apática e vítima de uma violência similar à de Jesus no cruel A Paixão de Cristo, mas não há torture porn. Em nenhum momento a câmera de Aronofsky deixa de ser compassiva à personagem, estando sempre colada a Jennifer Lawrence — logo, junta ao ponto de vista do espectador. Vale também refletir sobre uma perspectiva holística bem difundida que toma a casa como espelho do estado psicológico do dono, que no longa-metragem é Ele. Mas quem cuida desse interior é a Mãe (que congela ao pisar na porta de saída da mansão, tamanha a conexão), explorada até que o marido perceba a necessidade de destruí-la(s) e, assim, obter sua renovação, retomar a inspiração. Nesse ciclo pavoroso, Ele é o inconteste vilão. Mãe representa não só a natureza, como todas as mulheres que se doam em vão.