A revolução dos bichos
por Bruno CarmeloUm governante autoritário se volta contra uma parcela da população. Com intensa campanha de marketing, convence a maioria do povo que aquela minoria é perigosa, impura, precisando ser excluída e, em segundo tempo, exterminada. A ciência comprova que não existe ameaça nenhuma, mas a lavagem cerebral supera qualquer constatação dos fatos: o ódio é maior que a razão. Esta poderia ser uma descrição do nazismo e, de fato, também é. Mas funciona como sinopse de Isle of Dogs, épico histórico que não esconde sua evidente metáfora das ditaduras e regimes nazifascistas de ontem e de hoje.
Nos últimos anos, o diretor Wes Anderson vem tratando de temas leves muito próximos de sua estética: ele abordou a vaidade e o luxo de modo vaidoso e luxuoso em O Grande Hotel Budapeste (2013), a ingenuidade infantil de maneira ingênua em Moonrise Kingdom (2012). São escolhas obviamente coerentes, porém pouco instigantes, conseguindo apenas reforçar os inúmeros tiques de linguagem do diretor com sua mise en scène de casa de bonecas. Agora, confrontado a temas mais pesados como as ditaduras, os campos de concentração e a pseudociência a serviço dos tiranos, seus traços autorais encontram uma fricção verdadeiramente interessante.
Para começar, o nazismo nunca foi tão divertido. Partindo de um prólogo lendário, o diretor investe em diálogos mordazes e cenários gigantescos, criados para a animação stop motion com grande apuro visual. Em uma narrativa só, parodia a cultura japonesa (o teatro kabuki, os haikais, o sumô), o faroeste, o road movie intimista e o épico de aventuras. Finalmente, Anderson se apropria destes elementos para subvertê-los, ao invés de apenas replicar o que têm de mais lúdico. Desta vez, a trilha sonora está mais discreta, a câmera se move menos. Isle of Dogs sabe dar espaço a silêncios e desconfortos, como cabe a temáticas tão próximas de um trauma histórico real.
Os personagens principais são cães, como sugere o título, exilados numa ilha repleta de lixo por supostamente espalharem a gripe canina aos humanos. O filme desempenha um trabalho eficaz ao dividir essa sociedade de renegados em castas, mostrando como a barbárie afeta mesmo os cães mais civilizados. A relação com o comportamento humano é evidente, e reforçada pela expressividade acentuada e os traços antropomórficos dos bichos. Sim, os cães são metáforas de humanos, e por este distanciamento do real, conseguimos rir e nos imaginar numa fantasia – algo que a imagem de homens e mulheres reais num campo de concentração tornaria mais difícil de digerir. A animação, neste caso, serve como decalque, como possibilidade de repensar a História por meio de metáforas.
Entre os cachorros, o roteiro propõe um complexo desenvolvimento de personagens, com atenção especial a Chief, com voz de Bryan Cranston. Para quem ainda desmerece o trabalho dos atores em animações, as excepcionais nuances atribuídas pelo ator levam a pensar que estes trabalhos também mereceriam recompensar nas grandes premiações de cinema. Outros artistas de peso ganham pequenas participações de luxo (Tilda Swinton e Scarlett Johansson, principalmente), que devem ajudar a promover o filme. Mas no que diz respeito ao elenco, o resultado repousa sobre os talentos de Bryan Cranston, Liev Schreiber e Edward Norton. Entre os personagens humanos, é louvável a tentativa de humanizar os vilões e construir mulheres de atitude, além de incluir acenos à situação dos imigrantes e refugiados de hoje. É impressionante como, em seu delírio cômico, o filme jamais perde a referência à realidade.
Isle of Dogs é prejudicado em alguns momentos. Anderson, incapaz de abrir uma ferida sem curá-la logo depois, adocica esta bela história de amizades com alguns romances pouco interessantes, servindo quase como paródia de si mesmos. Além disso, cria uma quantidade de cachorros maior do que consegue desenvolver. Em um momento importante da narrativa, esquece Rex, King, Boss e Duke por não ter muito o que fazer com eles. De mesmo modo, o papel do Oracle e de Nutmeg merecia uma função maior do que a de mero sidekick feminino.
Mas estes detalhes não prejudicam os méritos do filme. Ele investe em uma animação pouco usual para os dias de hoje, com códigos de linguagem fora da época (as conversas com ambos os personagens olhando para a câmera, em profundidades diferentes, remete aos dramas clássicos de Hollywood dos anos 1940 e 1950) e gêneros subexplorados nos nossos dias (faroeste e cultura japonesa) para repensar feridas abertas da História mundial do século XX, e suas consequências no século XXI.
Filme visto no 68º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2018.