Um sonho repetido de liberdade
por João Vítor FigueiraNão há nada tão bom que não possa melhorar? Não exatamente. Apresentar uma nova versão de um filme clássico que funcionou tão bem em seu contexto original e, mesmo décadas depois, ainda ressoa de forma relevante não é tarefa fácil. O diretor dinamarquês Michael Noer (R, Vesterbro), na direção de seu primeiro longa-metragem com diálogos em inglês, encarou o desafio de maneira minimamente digna, mas apenas funcional em Papillon, sem conseguir ser capaz de imprimir muita personalidade (ou originalidade) no projeto.
Há de convir que a nova versão do clássico filme de 1973 — dirigido por um audacioso Franklin J. Schaffner e com o cacife de ser estrelado por Steve McQueen e Dustin Hoffman — tem seus méritos. O filme é eficiente na ação, razoável na criação de tensão e até emula e atualiza parte dos infernais perigos tropicais da opressiva colônia penal para onde os protagonistas são levados. O problema é que o drama, o grande destaque do filme original, nunca decola completamente, fruto da falta de ousadia do filme.
Charlie Hunnam vive Henri Charriere, também conhecido como Papillon, ou Papi, por conta da simbólica tatuagem de borboleta que estampa no peito. Ao contrário do filme original, este remake opta por mostrar uma espécie de prólogo sobre a vida de Henri antes da condenação injusta por homicídio que recebeu em Paris no início da década de 1930. A medida mergulha o espectador em uma França folclórica de crime e hedonismo nas esquinas de neon dos arredores do Moulin Rouge. Vítima de uma armação, Papillon é enviado para uma cadeia de segurança máxima na Guiana Francesa, onde a exuberância da natureza é proporcional aos riscos que o local oferece. Destinado a fugir, custe o que custar, Henri se aproxima de Louis Dega, vivido por Rami Malek, um sujeito de classe alta condenado por fraudes financeiras que carrega no reto o dinheiro necessário para tentar sobreviver na prisão.
É difícil superar a presença de cena e o charme de Steve McQueen, mas Hunnam tenta. O ator faz o necessário para entregar uma performance com elegância e força, mas carece da insolência calculada que um personagem como Henri tanto precisa. Hunnam surpreende, entretanto, nas cenas em que está fragilizado, especialmente no flerte com a loucura que se dá nas duas estadias que Papillon tem na solitária. Para um filme sobre determinação, é importante que o ator que se destacou em Sons Of Anarchy consiga mergulhar fundo nas sucessivas tentativas de desumanização que seu personagem enfrenta. Malek tem uma atuação cheia de maneirismos — não que a de Hoffman também não seja assim — para Dega, mas também impressiona quando seu personagem é mais intensamente testado.
Em termos estilísticos, Noer não se furta de recriar tomadas do filme original enquanto o texto de Aaron Guzikowski, inspirado na autobiografia publicada por Henri Charrière e no roteiro de Dalton Trumbo e Lorenzo Semple Jr., recorre à frases ipsis litteris do filme original com frequência. Nada disso é exatamente ruim quando se considera o alto nível do longa-metragem original, mas são sinais da falta de originalidade de Noer.
Pode-se discutir a equivalência da violência gráfica da versão de 2018 com a apresentada pelo filme de 1973. O sangue falso no clássico estrelado por McQueen parece datado para o espectador moderno. Em contrapartida, o filme atual investe em um nível de realismo gráfico, com direito decapitação, tripas fora do corpo e facadas convincentes. Há quem argumente que a violência do filme é um mero fetiche para atingir as sensibilidades de um público cada vez mais sedento por estímulos nesta direção. Mas mesmo as sequências mais sanguinolentas estão contextualizadas na atmosfera de ameaças que Papillon quer atingir — especialmente para fazer aflorar o sentimento de que é o instinto de sobrevivência que move o enredo.
A fotografia de Hagen Bogdanski é capaz de transmitir a atmosfera desesperançosa da prisão aliada a um design de produção que torna os ambientes ainda mais tétricos e insalubres do que no filme original. Nas cenas externas, o destaque fica por conta da maneira como os aspectos da natureza são filmados de uma maneira que ressalta seus perigos. A trilha sonora de David Buckley é um tanto genérica e não tem a mesma gravidade que a identidade musical criada por Jerry Goldsmith há quatro décadas e meia. Ainda nos aspectos técnicos é estranho que, em uma produção deste porte, a maquiagem utilizada para envelhecer Hunnam seja tão pouco convincente (especialmente no epílogo).
Superar o filme de Schaffner era mais difícil do que fugir da Ilha do Diabo e este novo Papillon passa longe disso. Há que se louvar, no contexto de 2018, a importância do comentário sobre o sadismo do sistema penal, as denúncias colaterais aos horrores do colonialismo e a moral sobre o valor da integridade individual diante de um contexto opressivo, mas tudo isso já estava lá de forma muito mais completa em 1973. Ainda assim, mesmo inferior, Papillon entretém.